quinta-feira, 2 de abril de 2009

RÉQUIEM PARA KITTY GENOVESE


Hallo Kitty! Tu eras uma jovem de 28 anos que vivia uma vida comum no Queens em Nova Yorque e foste brutalmente assassinada praticamente à porta do edifício onde moravas. Na madrugada do dia 13 de março de 1964 tu foste atacada por Wilston Moseley – que depois se constatou ser um serial killer que já havia matado outras duas mulheres – esfaqueada diversas vezes, estuprada e roubada em 29 dólares, numa ação que durou quarenta e cinco minutos. Ao todo 38 pessoas nos apartamentos próximos abriram suas janelas, ouviram teus gritos de socorro e nada fizeram. Só depois que teu corpo se encontrava inerte na calçada e o assassino tinha se evadido um dos vizinhos chamou a polícia. Pobre Kitty! Nada do que vou dizer vai servir de consolo para ti ou para aqueles que choram tua morte; nada vai mudar também os fatos que tão mal te resultaram; nada do que eu diga vai trazer teus dias bons e ruins e tua vida pacata, simples e sem brilho especial de volta. Contudo, onde quer que tu estejas, vais poder entender como as coisas são, mas não deveriam ser. Tu foste vítima não só do assassino frio Wilston, - este apenas empunhou a arma que te feriu de morte – mas, também, de uma sociedade capitalista altamente industrializada que desumaniza as pessoas; onde estas são valorizadas apenas pelos números que representam: "tantas horas trabalhadas, tantas peças produzidas, tantos dólares ganhos". Uma sociedade onde seus membros são espectadores passivos das mazelas que os rodeiam; onde “os outros” não são seres humanos como tal, seres com alma, sentimentos e valores iguais aos nossos; se vivem além de nossas paredes, se vivem fora do “invólucro” próprio que cada um de nós carrega em torno de si - uma espécie de aura que nos envolve, e na qual qualquer entrada não permitida nos incomoda, nos perturba - são seres diferentes, são moradores de um mundo que “não nos interessa”, não nos pertence e, por isso, fora do alcance de nossa solidariedade, de nossa preocupação. Essa sociedade destituída de suas células primeiras, as famílias, constitui uma amálgama não identificável de indivíduos solitários que pugnam a luta inglória de obter “um lugar ao sol”, de conquistar o privilégio do “eu primeiro” a qualquer custo, sem considerar os direitos dos outros, ou olhar as necessidades do vizinho ao lado; essa sociedade gera, nas suas entranhas degradadas de valores morais, indivíduos nefastos com instintos voltados para o niilismo que destrói, que aniquila, voltados para o mal pelo prazer mórbido de praticá-lo; essa sociedade colocou a arma na mão do assassino e voltou as costas quando o crime estava sendo praticado. O comportamento egoísta e indiferente desses homens-máquina modernos urbanos desmente o que o poeta e o filósofo disseram: "Nenhum homem é uma ilha isolada", frase do poeta inglês John Donne, depois atribuída ao filósofo Teilhard Chardin, a qual traduz o sentimento que acode ao poeta e ao filósofo em acreditar que o gênero humano é bom e faz parte de um todo indivisível; que seus membros são unidos e dependem uns dos outros; que, ao morrer um homem, deixa um sentimento de perda, um vazio na alma naqueles que ficam, uma incompletude angustiosa como o sentimento de orfandade; tanto, que Donne continua seu poema: "cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano", e o filósofo completa seu pensamento: "Isto significa que o homem não consegue viver isoladamente e uns precisam dos outros para sua sobrevivência" Santa ingenuidade! Ao poeta podemos atribuí-la a licença que lhe concede a musa ao lhe dar o dom de enxergar com a alma; e, ao filósofo, cujo pensar está acima das coisas vãs, terrenas, podemos entender que o mundo ao qual se refere é um ideal a ser alcançado, e não esse mundo mesquinho cotidiano que nos oprime e nos transforma em gado sem vontade e sem objetivo. O comportamento da sociedade humana, longe de ser esse utópico ideal poético-filosófico, está mais próximo de uma hipotética matilha degenerada de lobos que, antes de caçarem unidos para obter melhores resultados, canibalizam-se uns aos outros até não mais constituírem uma comunidade coesa e cooperativa e, sim, um conjunto de seres brutos, isolados nos seus egoísmos deletérios e finais. Por isso, Kitty, onde quer que tu estejas, ainda que te vejas triste por não poder contemplar horizontes, sentir o aroma das flores ou ouvir o som de uma sinfonia, não chores! O mundo que deixaste para trás é vil, não vale uma única lágrima tua. JAIR. Floripa, 02/04/09.

4 comentários:

Augusto Ouriques Lopes disse...

Nada a acrescentar. Um texto justo, escrito com competência e coração sobre um acontecimento à um indivíduo que reflete valores, ou a falta deles, universais.

Ruy disse...

Jair, vejo que vc retornou ao tema da Kitty Genovese, e voltou em grande estilo. Percebo aqui neste texto carregado de emoções e afetos — não sei se intencional ou não — material de claro conteúdo marxista, o que é louvável na minha “omilde” opinião, primeiro porque reúne uma bela exposição literária sobre o sacrifício dos inocentes. E, por segundo, porque conseguiu num texto enxuto e conciso explicitar, criticar e desnudar os principais entraves do sistema capitalista a uma sociedade mais justa, igualitária e solidária que, para se reproduzir e perpetuar, acaba por afastar os homens do convívio solidário com seus pares. E isso tudo vc conseguiu sem citar, literalmente, a mais-valia, um primoroso conceito de K. Marx, que intenta mostrar a dinâmica da acumulação do kapital. Também gostei bastante da aproximação que vc fez da sociedade que “se canibaliza” (minha inserção) nos moldes do que Thomas Hobbes escreveu na sua famosa obra, Leviatã, sobre o “homem ser o lobo do homem”, em meados do século XVII.
Grande abraço,
Ruy, o H de J.

JAIRCLOPES disse...

Caros,
Fico realmente feliz que meus leitores, ainda que apenas dois, tenham captado o exato sentido que me motivou escrever sobre o tema. Este é o texto que deveria ter sido publicado na ocasião que escrevi "KITTY GENOVESE", contudo, como a maioria das pessoas já não lembrava do acontecido publiquei aquele artigo em forma de reportagem com intuito de "contar" o que aconteceu, e, agora, o verdadeiro motivo se impôs com veemência e não pude fugir dele. Obrigado.

JAIRCLOPES disse...

Outra coisa, fiquei satisfeito com o resultado do texto porque, pela primeira vez, escrevi na segunda pessoa do singular com todos os verbos concordando em pessoa, tempos e modos. Para mim, beletrista eventual, foi uma vitória. JAIR.