quarta-feira, 28 de julho de 2010

O Pavor



Quando escrevi sobre medo me ative a comentário superficial sobre os sintomas físicos que essa emoção pode causar como, sudorese e taquicardia. Mas o medo não é a única nem a mais intensa emoção que os humanos sentem quando sua vida ou saúde está correndo risco, há um sentimento muito mais poderoso, algo que pode causar paralisia catatônica, embotar a percepção e, em casos extremos, levar a morte: o pavor. Assistindo novamente o documentário “102 minutos”, montado a partir de filmagens feitas in loco e em tempo real quando da destruição das torres gêmeas em Nova Iorque, me dei conta que estava presenciando algo muito além do medo no rosto das pessoas, estava presenciando o pavor. É de se inferir que terrorismo causa medo, terrorismo extremo causa medo extremo, ou seja, pavor.

Pois é, o documentário tenta (e consegue) captar, através da colagem de inúmeras filmagens, umas amadoras e outras de jornalistas, o clima que permeava as ruas da cidade durante e momentos depois dos atentados. Há um registro antropológico real das reações de cidadãos que se viram frente ao horror inexplicável; à angustiante sensação de impotência diante da fauce do monstro ceifador de existências. O programa tem duração de 102 minutos, tempo exato desde a primeira colisão numa das torres até o desabamento da última. As faces e expressões dos cidadãos são focados nos momentos de pura catatonia em virtude daquilo que não conseguem compreender; as reações de surpresa, assombro e raiva se mesclam num amálgama que faz a alma das pessoas emergir por suas bocas abertas e extáticas; todos estão tomados de pavor, não conseguem ser indiferentes ou reagir de modo “adequado” como fariam em situação bem definidas; o horror transcende o compreensível, o aceitável, o assimilável.

É de se imaginar que num outro contexto, no último momento dos judeus dentro das câmaras de gás nazistas, no exato instante em que, finalmente, compreenderam, suas expressões fossem como estas que vimos na TV. Parece que nosso organismo e nossa mente estão, de certa forma, “programados” para absorver certa quantidade de perigo e reagir conforme, mas não conseguem assimilar uma overdose de ameaças. Então, quando estas são excessivas, acontece um curto circuito no módulo de auto defesa que cria o medo, o mecanismo se desliga e o próprio organismo atacado de pavor pode se desligar também, pode morrer. O pavor é uma emoção definitiva, terminal.

Está comprovado que casos extremos de pavor causaram a morte de pessoas durante os maciços reides aéreos sobre a Alemanha na segunda guerra mundial. O pavor de não encontrar abrigo para se defender dos bombardeios, ou a “certeza” que seriam atingidos pelas bombas, mesmo em locais presumivelmente seguros, fizeram que muita gente entrasse em choque e morresse. Morreram de pavor. O mais pungente, contudo, é que mesmo antes de as bombas caírem, havia gente, cujo organismo entrava em colapso ao escutar o ronco de centenas, às vezes milhares, de motores dos aviões que se aproximavam. Meu professor de pintura, Bruno Mrosk, nasceu em Berlim em 1933, onde viveu até 1949. Ele, como testemunha ocular e auditiva dos bombardeios, conta que cinco ou seis minutos antes dos bombardeiros sobrevoarem a cidade, ouviam-se seus motores, eram apavorantes minutos de incerteza e expectativa que fizeram muitas pessoas perderem a razão e algumas se matarem ou morrerem de pavor.

Pesquisando não encontrei teoria alguma que explique o pavor, tampouco explicação se essa sensação é considerada um mecanismo de defesa dos animais. Portanto, presumo que não seja uma emoção evolutivamente positiva como o medo, talvez o pavor seja destrutivo em quaisquer circunstâncias. Parece que não estamos “adaptados” a ele, não convivemos de modo pacífico com essa emoção extrema, nosso código genético não contém genes de pavor, a sensação é pessoal e intransferível, por assim dizer. De qualquer forma, é razoável supor que os cidadãos dos EUA, depois daqueles momentos de estupor, tenham reagido de forma a aprovar e até aplaudir as decisões bélicas de Bush. Fazendo uma transposição teórica, se fôssemos nós brasileiros atacados daquela maneira por algum inimigo, é quase compulsório aceitar que teríamos reação semelhante aos americanos e aprovaríamos qualquer retaliação adotada pelo Estado.

O documentário me mostrou uma perspectiva nova, passo a entender que cidadãos comuns, aqueles que não têm opinião formada sobre terrorismo e guerras, aqueles que desejam apenas viver suas vidas descomplicadas, sejam compelidos a eliminar de suas existências o pior pesadelo jamais experimentado. Entendo que apesar de serem pacíficos, queiram sublimar a injúria que seu país foi submetido e, principalmente, atacar aqueles que lhes causaram a pior sensação de suas vidas, o pavor. JAIR, Floripa, 28/07/10.

domingo, 25 de julho de 2010

Sobre Cerveja



A cerveja, como a conhecemos, é uma bebida socializante de baixo ou médio teor alcoólico consumida em baixa temperatura, e que tem a agradável função de reunir amigos e conhecidos na mesa de um bar ou numa confraternização onde, normalmente, churrasco é a comida preferida. É uma bebida fermentada composta de três ingredientes principais, lúpulo, malte, e água, as vezes com adição de açúcares e xaropes que lhe dão sabor diferenciado. Mesmo tendo tão poucos componentes, devido às várias maneiras de fazer e dosagens possíveis de cada uma das partes, é virtualmente a bebida que mais apresenta variações em suas apresentações ao público consumidor, existe mais de oitocentos tipos de cervejas a disposição dos bebedores. É um universo no qual nenhum cervejista militante deixará de ser atendido por mais exigente que seja.




Quanto à história da bebida, onde ela surgiu pela primeira vez, não existe consenso entre os estudiosos do assunto, há indícios que tenha sido no Oriente Médio cerca de seis mil anos atrás. Foram encontrados traços de uma bebida fermentada de malte em ânforas antigas. Feitas as análises químicas constatou-se serem restos de cerveja, aliás, bem parecida com a bebida atual. É provável que do local de origem a bebida tenha se propagado para a Europa e Ásia ainda no tempo de Marco Polo e da Rota da Seda. Há, entretanto, historiadores que colocam sua origem na Mesopotâmia e sua propagação pelo mundo feita pelos romanos durante seu império. Seja onde for e qual povo que a fabricou primeiro, calcula-se que nos anos mil de nossa era já se tornara uma bebida apreciada nos “quatro cantos da Terra”, para usar uma expressão bíblica. Evidente que só onde existiam os ingredientes era possível fabricá-la, assim sendo, nas Américas e na Oceania só foi introduzida após a colonização européia dessas áreas.





Tecnicamente a cerveja é uma bebida fácil de ser confeccionada, ao malte - que nada mais é que cevada torrada - fermentado em água, adiciona-se lúpulo (planta trepadeira de origem européia), que, depois de filtrado, obtêm-se a cerveja. Quanto mais torrada a cevada, ou seja, malte mais escuro, obtêm-se uma cerveja mais escura; quanto mais lúpulo se adiciona, mais amarga se torna a bebida; quanto mais fermentada mais alcoólica; quanto mais malte, mais generosa, ou seja, encorpada; quanto mais tempo de maturação, mais “especial”. Existem cervejeiros que substituem a cevada por arroz, milho ou trigo, daí sai uma cervejinha leve e clara e de paladar discutível, como aquelas tão ao gosto dos americanos.




Tão fácil é de se fabricar a bebida que aqui no sul do país é comum as famílias terem sempre um estoque das caseiras. Minha mãe fazia uma cervejinha caseira bem razoável, que era consumida principalmente no natal. Em tempo, cerveja caseira se parece com o tradicional chope, não tem conservantes, cuja ausência é que diferencia o chope da cerveja engarrafada ou enlatada.




Pois é, sendo uma bebida “importada” no sentido que aqui aportou trazida pelos imigrantes europeus, tornou-se nacional na medida em que foi adotada pelos brasileiros como bebida predileta, assim como o vinho o é para os franceses. Além disso, sofreu “tropicalização” no modo de ser consumida, pois aqui é impensável bebê-la em temperatura ambiente, só se consome gelada, e, estranhamente, até “estupidamente gelada” o que é uma aberração. Vejamos por que. As baixas temperaturas inibem as papilas gustativas de nossa língua, aqueles receptores que são responsáveis pela percepção do sabor das coisas que deglutimos. Com as papilas impedidas de analisar o gosto pelo líquido congelante, todos os sabores se parecem, não existe cerveja boa ou ruim. O bebedor que pede uma “estupidamente” faz jus à pedida, é um estúpido. “Loura gelada” é convidativa e sensual, congelante é para os que nada sabem da arte de beber.




Bem, como escrevi no início, existem mais de oitocentas variedades do produto e algumas são mais conhecidas como, stout, ale, maltzebier, bock, lager e pilsen nossa preferência nacional. Aqui o cervejista brasileiro quase sempre comete mais um pecado, classifica como cerveja clara a pilsen e às demais denomina, cervejas pretas, colocando no mesmo saco desde as adocicadas maltzbiers até a fortíssima stout que, no Patroti, tem a caracu como lídima representante dessa família.



E por falar em pecado, mais uma vez o bebedor desavisado atenta contra as normas não escritas de como se saboreia uma boa cerveja, ao pedir “sem colarinho”. Como sabemos, o “colarinho” da bebida é aquela espuma de dióxido de carbono que se sobrepõe ao líquido no copo. Pois é, aquela porção de espuma é, justamente, o que impede o líquido de entrar em contacto com o ar ambiente. A ciência nos diz que a atmosfera contém alguma coisa como 21 por cento de oxigênio, e é esse elemento, aliás, maior responsável pela vida do Planeta, que “ataca” o líquido cervejal deixando-o “choco”. Assim, ao se expor a cerveja ao oxigênio está se permitindo que este reaja com o líquido como o faz com tudo que toca. O oxigênio é responsável pela oxidação dos metais ferrosos a qual é chamada de ferrugem. Quase todos os elementos são atacados pelo oxigênio com exceção dos chamados metais nobres como ouro e platina, que são, justamente, nobres por que se mantêm inalterados na presença do elemento , o que não acontece com nossa cervejinha do dia-a-dia, que fica “choca”, ou seja, oxida-se e se torna intragável para aquele de paladar mais apurado.




Claro que, como “gosto não discute” não há regras invioláveis no que diz respeito à libação dessa apreciada bebida, apenas é de se lamentar que frente um universo tão grande e tão variado, o bebedor brasileiro se atenha apenas às pilsens, sem dar chance a outras variedades tão boas ou melhores que estas. Nos pubs ingleses bebe-se muita cerveja, mas lá o consumidor as pede pelo tipo e não pela marca, o bebedor inglês varia mais suas libações que o cervejeiro tupiniquim.




Não sou cervejeiro, tampouco bebo qualquer bebida alcoólica, mas, durante muitos anos, fui um razoável colecionador de cervejas nacionais em garrafas, cheguei a ter mais de quinhentas. Hoje, por falta de espaço, minha coleção encontra-se espalhada por muitos acervos de colecionadores em vários estados deste país.

As ilustrações do texto são de minha antiga coleção. JAIR, Floripa, 25/07/10.