sexta-feira, 29 de abril de 2011

Nikita


Logo depois da segunda guerra, quando as duas maiores potências mundiais arreganhavam os dentes uma para outra no que se convencionou chamar de guerra fria, quem representava o Ocidente era Eisenhower que havia substituído Truman na presidência dos EUA, e o representante da URSS, que havia se entronado no cargo de primeiro ministro após a morte de Stalin, era nada menos que um rústico, mal definido politicamente, meio bufão, filho de camponeses e que já fora mineiro de carvão: Nikita Khruschev.

Khruschev chegou ao poder sem nada saber de armas nucleares, no entanto, parece que aprendeu apenas “para o gasto”, mas isso não o impediu de ameaçar o Ocidente com mísseis que os soviéticos não tinham, segundo seu próprio filho, Sergei. Agora se sabe que na ocasião (1953) os EUA detinham 749 ogivas atômicas, contra apenas seis do lado soviético, e, talvez por isso, a fraude e o blefe faziam parte do jogo de Nikita

Em 1956, tropas francesas, inglesas e israelenses, tomaram o canal de Suez no mesmo momento que tanques soviéticos esmagavam uma rebelião na Hungria. Como as tropas invasoras do canal não haviam avisado aos americanos que sua atitude visava derrubar o líder anticolonialista, Gamal Adbel Nasser, Eisenhower ameaçou com represálias econômicas, se as tropas não se retirassem. Nesse momento, para evitar que a imprensa mundial tomasse conhecimento do banho de sangue que acontecia em Budapest, Nikita ameaçou lançar mísseis nucleares (que não existiam) sobre Londres, Paris e Tel Aviv, se os invasores não retirassem suas tropas imediatamente do Canal. As tropas saíram de fato rapidamente do Canal, contudo, em decorrência da ameaça velada de Eisenhower, não pelo blefe ostensivo de Kruschev, mas este não sabia disso. Porém, como a ameaça do chefe do Kremlin foi pública e de Eisenhower não, Nikita concluiu que sua fanfarronice fora a causa da retirada e, a partir de então, passou a usá-la sempre que a oportunidade se apresentava. O mundo passou a tremer os joelhos sempre que o dirigente fanfarrão abria a boca, mas a ameaça de retaliação atômica era apenas onirismo político do “rato que ruge” do Kremlin.

Seu filho Sergei, engenheiro aeronáutico, hoje morando nos EUA onde é membro do Instituto de Política da Universidade de Harvard, John F. Kennedy School of Government, em uma entrevista para o Washington Post, em 1992, revelou que Nikita fora um entusiasta admirador dos EUA, de Kennedy e, principalmente de westerns os quais costumava contrabandear para a União Soviética para assisti-los em segredo. Nem seus pares na alta hierarquia do partido sabiam de suas predileções, mas ele incentivou seu filho a migrar para os EUA quando isso fosse politicamente viável. Entretanto, sua gestão não era totalmente inócua, cometeu dois atos que se devidamente reconhecidos poderiam colocá-lo no panteão dos heróis soviéticos: logo que assumiu, mandou prender e executar Lavrenti Béria, o todo poderoso, mal definido sexualmente e sádico cão-de-guarda de Stálin que perseguiu e mandou fuzilar milhões de compatriotas, sem qualquer formalidade que semelhasse a um inquérito ou processo; e, num discurso secreto em fevereiro de 1956, denunciou as atrocidades e expurgos de Stálin, as quais haviam deportado para a Sibéria e matado de fome quase quarenta milhões de soviéticos.

Como um adolescente entusiasmado que vai à Disney, visitou os EUA em 1959 quando participou de reunião de cúpula na ONU, ocasião em que, de repente, vendo como a reunião se desenrolava, tirou o sapato e começou a espancá-lo violentamente sobre a mesa. Seu objetivo era chamar a atenção dos outros delegados presentes, mas acabou chamando a atenção de todo o mundo sobre sua atitude e seu "desabafo". Ficou mais famoso pelas sapatadas na mesa da ONU do que por sua atitude de desafio quando resolveu colocar mísseis de médio alcance em Cuba, mas teve que recuar em face de atitude firme de Kennedy que não se intimidou com tal bufonaria. Antes havia dito: “Por que não colocar um ouriço dentro das calças de Tio Sam?”. Sabendo que levaria anos para a União Soviética alcançar a produção de mísseis de longo alcance dos EUA.

O interessante é que, mesmo com medo que o Ocidente viesse a atacar a URRS com seus mísseis, mesmo sabendo que suas patacoadas eram apenas para encobrir as deficiências russas em matéria de tecnologia nuclear, ele descobriu que tinha um trunfo nas mãos: Berlim. Em off para seus camaradas de partido costumava usar a metáfora: “Em Berlim estão os culhões do Ocidente. Toda vez que quero fazer o Ocidente berrar, eu espremo Berlim”.

Contrário ao que nós, temerosos habitantes do Planeta pensávamos, a guerra fria tinha de um lado americanos preocupados em produzir mais armas cada vez mais letais para conseguir o tal “equilíbrio do terror”, e do outro, um néscio calcando suas ameaças baseadas em poucas e primitivas bombas para serem lançadas de escassos aviões e submarinos de tecnologia duvidosa. O que mantinha o suspense da população mundial eram apenas palavras e gestos, tínhamos medo de fumaça, graças ao senhor Nikita Khruschev que faria melhor figura como vilão estabanado num filme de Mel Brooks.

Até que, em 1964, seus pares do Politburo resolveram depô-lo sob acusação de grosseria, turrice, excentricidade, arrogância, incompetência, nepotismo, depressão, imprevisibilidade, megalomania e de estar ficando velho. Era a primeira vez que um dirigente máximo do partido era defenestrado por seus camaradas, a regra era o primeiro secretário permanecer na cadeira até a morte. Contudo, Khruschev mostrou seu lado far play, quando comentou conformado: “Apraz-me saber que o partido chegou ao ponto de poder passar as rédeas até no seu primeiro secretário” e acrescentou, “Vocês me cobriram de merda e lhes digo: estão certos”. Em seguida, retirou-se discretamente para sua dacha onde permaneceu num anonimato deprimente até 1971 quando faleceu. A despeito de sua origem humilde, de uma carreira marcada pelas patuscadas, surpresas e lambanças havia se tornado um pop star como nenhum outro dirigente russo jamais se tornara e que só viria a acontecer novamente quando Mikhail Gorbachev assumiu o poder em 1985. JAIR, Floripa, 26/04/11.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os peixes


Nos anos setenta as contestações eram a moda, in era contestar e out conformar-se às regras, proibido proibir, era a palavra de ordem, a juventude paz e amor fazia questão de dizer-se contra, não importava ao quê. Eu também era jovem àquela época e me parecia normal que a geração baby boom, ou seja, os nascidos logo após a segunda guerra, estivesse cansada das restrições a que seus pais e avós foram submetidos, e as quais engessavam a criatividade, a liberdade de agir e pensar sem barreiras, sem ideologias tacanhas. Contudo, o que nossa juventude não enxergava é que nossa sociedade não existiria com liberdade total, a qual é uma utopia que só serve para teses de sociólogos deslumbrados ou para literatura engajada, como se diz.

Pois bem, desde que o homem, ente social que não consegue sobreviver a não ser em ajuntamentos com os seus, passou a compor tribos e depois aglomerados maiores como cidades, viu necessidade de regras que permitissem uma convivência se não harmoniosa, pelo menos com pouco atrito entre as pessoas. Não há alternativa, ou o homem cria as regras e autoridades que as façam cumprir, ou é o caos, a anarquia incontrolável que dissolve a própria sociedade. Aliás, não haver regras já é uma regra, portanto, torna-se um paradoxo: impor uma proibição que proíbe imposições é racionalmente incongruente. A respeito de uma civilização sem regras já escrevi sobre a Colônia Cecília, utópica sociedade anarquista que foi criada em minha cidade, Palmeira, no final do século dezenove, e que foi para o vinagre em pouco tempo depois que os pretensos anarquistas se desentenderam.

Então, todas as instituições sejam laicas ou religiosas têm suas regras, seus dogmas e regulamentos a que seus membros devem seguir e acatar sob pena de tornarem-se párias sociais ou de serem punidos. Principalmente as religiões são pródigas em não pode isso, não pode aquilo, e por aí vai.

Com o advento da semana santa e a proibição da igreja a seus seguidores de ingestão de carne, mas a liberdade de comer peixe, me fez lembrar de uma ocorrência em Angola no século XVIII. O interessante caso, o encontrei num livro que tratava das conquistas portuguesas na África. O padre Afonso Meira de Carvalhosa, pároco da freguesia de Caluquembe, encontrava-se frente a um dilema que lhe afligia sobremaneira e, para não incorrer em possível heresia que condenaria ao inferno sua alma imortal e as dos seus paroquianos, resolveu consultar autoridade maior sobre o assunto, para isso escreveu para o bispo, seu superior, em Portugal. Tratava-se da proibição ou não de os nativos convertidos poderem comer carne de hipopótamos na semana santa. Veja bem, HIPOPÓTAMOS! A resposta do Bispo português Dom Antonio Cintra foi que não haveria qualquer restrição: hipopótamos, ou cavalos d'água como eram chamados esses mamíferos pelos lusos, podiam sim ser degustados na semana santa, porque eram PEIXES! Afinal viviam na água, não é mesmo? Pode parecer piada antilusófona de brasileiro, mas a verdade é que está registrado como fato por um patrício, o autor do livro é português. JAIR, Floripa, 25/04/11.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Sobre racismo




Sem dúvida, a discriminação entre os assim chamados brancos e os assim chamados negros tem gerado uma das mais sérias ameaças à paz duradoura no nosso planetinha azul. À parte os argumentos imbecis e vazios sobre a suposta disparidade intelectual entre brancos e negros, ou entre brancos e “latinos”, (aliás, o que será um latino?) a divisão da humanidade nessas rígidas categorias é, em si mesma, totalmente estúpida. Na realidade biológica não há pessoas verdadeiramente negras ou verdadeiramente brancas. Sem dúvida, o grau de pigmentação da pele difere nas populações das diferentes partes do mundo. A função da pigmentação, como proteção dos raios ultravioleta do sol, exige que assim seja: à medida que se caminha para o equador, aumenta a concentração de raios ultravioleta, exigindo maior proteção. Portando, é de se esperar que as populações estabelecidas há longo tempo perto do equador sejam mais pigmentadas do que aquelas que vivem longe dele. Isso, entretanto, produz diferentes tonalidades de marrom, não apenas de preto e branco. Há virtualmente milhares de tonalidades entre o preto e branco, então é rematada estultice estabelecer fronteiras entre as duas cores.

O fato de uma pele ser muito pigmentada, num ambiente na qual ela é exposta a um alto grau de radiação ultravioleta, é sinal de harmonia biológica com o ambiente, e não pode, em nenhum sentido, servir de base racional crítica a capacidade social ou intelectual das pessoas. Quando as primeiras populações mudaram-se para o norte, para climas mais frios, reduziu-se a necessidade de pigmentação das peles e estas tornaram-se pouco a pouco mais claras. Deduz-se: todos somos descendentes de indivíduos de pele escura. À medida que as populações migrantes se mudaram mais para o sul, através da América do Norte, adentrando a América do Sul, reapareceu, mais uma vez, a necessidade de proteção, e, mais uma vez, a pigmentação aumentou. Deduz-se: todos, descendentes de nativos americanos, somos descendentes de indivíduos de pele branca. O fato de que em geral as peles dos americanos equatoriais não são tão escuras quando a dos africanos equatoriais é, com muita probabilidade, consequência do tempo bastante curto que houve para a pigmentação evoluir nesta parte do Planeta. Portanto, os graus de pigmentação da pele das diferentes populações do mundo refletem a adaptação a seus diferentes ambientes físicos, e apenas isso, racistas de plantão! A mobilidade social deste e do século passado tem, sem dúvida, encurtado o caminho para essas adaptações e causado problemas tantos para os cientistas sinceros que desejam mostrar a idiotice do racismo, como para os racistas que passaram a ter maiores dificuldades em rotular as pessoas por suas origens.

Quando pessoas de pele clara viajam por países de clima quente, a radiação solar cobra sem demora seus dividendos à pele destituída de melanina, a despeito dos filtros solares de graus elevados. Os turistas europeus que visitam nosso país no verão corroboram esse fato. E quando as pessoas muito pigmentadas vivem em climas de pouco sol como a Suécia, por exemplo, têm que adicionar mais vitamina “D” às suas dietas, porque esta vitamina é produzida com menos eficiência na sua pele naturalmente protegida.

A tendência de classificar certas populações como negras, enquanto se abriga os demais num exclusivo “clube” de brancos, é, portanto, duvidosa, discricionária e rematada necedade. E é mais do que uma questão de mero formalismo fazer objeção a esses termos, porque a separação dos grupos é explorada para permitir a existência de abismos sociais e econômicos, com os “brancos” do lado certo e os “negros” do lado errado, embora não exista base para essa divisão. Com o rótulo de “negro” na mão é muito fácil a pessoa “branca” aplicá-lo a qualquer grupo “apropriado” de indivíduos, atribuindo um conjunto de características arbitrariamente globais (promíscuos como VOCÊ! diria algum deputado racista da África do Sul, por exemplo), enquanto ela mesma se refugia atrás da conveniência de seu próprio rótulo. Tal prática não é mais que uma técnica eficaz (e burra) de ignorar as realidades do mundo, e substituí-las por preconceitos inflexíveis. Ao contrário do que pregam os racistas, não há características globais, nem de “brancos”, nem de “negros”, pela simples razão de que esses grupos, como tais, não existem, são meras criações de mentes estultas. Há, contudo, apenas a característica global de se pertencer à espécie humana, com talvez cinco milhões de anos de evolução do Homo por trás de cada um de nós.

O uso dos termos “brancos” e “negros” precisa ser deixado de lado como um primeiro passo para nos libertarmos do conceito divisório que há por trás disso. O atual status econômico e social das populações do mundo, que mostra uma minoria de pessoas de pele clara abocanhando a maior parte dos recursos do Planeta, é resultado do desenvolvimento histórico, ao qual faltou o mais das vezes qualquer vestígio de dignidade humana e de justiça. Com a palavra os “descobridores”, missionários religiosos e colonizadores europeus e suas conquistas de terras na Ásia, África e Novo Mundo. O imperialismo político e econômico do passado não pode ser usado para defender sua permanência no presente. Por certo, esse domínio da chamada raça branca não tem qualquer fundamento científico e social. Se essa divisão continuar ela ferirá mortalmente o coração da humanidade e, por fim, a destruirá. A escolha se impõe pela simplicidade: ou a verdadeira fraternidade universal dos Homo é reconhecida, seja qual for o grau de pigmentação da pele, ou o futuro será a desagregação com grande risco de extinção. JAIR, Floripa, 24/04/11.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sobre violência


Um tema contumaz e que absorve a mente de sociólogos, antropólogos e outros pensadores é a origem da violência humana. O Homo sapiens é um animal e a maioria dos animais interage ao mundo que o cerca através de comportamentos instintivos, é de se esperar que nós nos comportemos desse modo também. Contudo, o Homo é um animal que aprende, ele vem ao mundo equipado com poucas respostas instintivas: sugar, chorar, comer, sorrir, andar e fugir do perigo podem ser as únicas coisas que ele faz por instinto, tudo o mais é aprendido, tudo o mais é produto da cultura. Cultura feita pelo homem e que o modela à sua feição também.

Os comportamentos da sociedade com relação a sua estrutura política, econômica, religiosa, de costumes e cíveis, são inoculados através da cultura, ninguém exibe uma mensagem genética que determina sua conduta com relação ao casamento monogâmico ou que acate regime democrático, ou que seja cristão, por exemplo. Essas regras vêm da cultura. Todos nós viemos ao mundo com um potencial para viver milhares de estilos de vida, mas vivemos um só, que é imposto pelas tradições culturais do ambiente no qual nascemos.

A maiúscula variedade de formas comportamentais, incluindo crenças religiosas, regras sociais, estilos de vestuários e linguagem, dão mostras de nossa versatilidade extremada, de nossa flexibilidade e complexidade culturais. Não existem regras universais acatadas por todas as pessoas do Planeta. Mesmo proibições de assassinato e incesto, comportamentos desviantes condenados pela maioria das sociedades, são desrespeitados em algumas delas. O Homo sapiens é produto da seleção natural, mas o que o diferencia dos outros animais é que seu comportamento é moldado pela cultura que ele próprio criou.

Com esse background robusto é estultice relacionar a violência humana, especialmente as guerras, com a agressiva exibição de caninos ameaçadores de um babuíno alfa desafiado, ou as marradas de antilocabras machos disputando a atenção do harém de fêmeas no cio, por exemplo. Os administradores e militares nacionais que projetam os conflitos inter nações não estão engajados na agressão, mas na política, e os indivíduos nos campos de batalha assemelham-se mais a cordeiros obedecendo ao efeito manada, e não a predadores excitados no encalço de presa fugidia. Não há qualquer dúvida que de ambos os lados a matança é levada a efeito numa atmosfera carregada de emoções fortes e raiva inexplicável, mas pensemos em quanta doutrinação e despersonalização do “outro” foi necessária para motivar esses guerreiros. A atitude “faca na boca” de soldados especiais como green berets e seals, é conseguida através de duríssimo treinamento e doutrinação que poucos militares conseguem superar, em geral os soldados “normais” matam para não morrer, sendo que a maioria não mata, apenas dá tiros a esmo e abriga-se para não ser atingida.

O ser humano não é programado para combater ou para matar, nem mesmo para caçar; sua habilidade para fazer essas coisas é uma aquisição cultural, aprendida dos mais velhos que aprenderam de seus ancestrais que, em última análise, comportavam-se assim em consequência de pressões da sociedade de onde nasceram. É irônico que a maravilhosa capacidade cultural, capacidade de elevar-se acima dos outros animais quanto ao relacionamento social, seja o instrumento que erige barreiras entre as pessoas. Crenças religiosas e ideologias diferentes são, numa intensidade vergonhosa para a raça humana, causas de ódio que gera guerras e conflitos.

Mais ainda, terrível é constatar o efeito divisor da linguagem. Nenhuma outra criatura tem a capacidade que o Homo tem para a articulação racional de sons que traduzem pensamentos abstratos, na verdade a linguagem falada é o fundamento sem qual não existiria a cultura, e sem esta não existiria o próprio homem civilizado. Sem a linguagem as convenções sociais complexas e a tecnologia sofisticada não existiriam, seríamos primatas vivendo da coleta de alimentos reunidos em aldeamentos primitivos ainda. A linguagem é o veículo que aproxima as pessoas, mas também divide a humanidade em grupos, às vezes, inconciliáveis, pois a barreira dos idiomas impede uma comunicação entre agregações diferentes. É razoável inferir que se todos falassem a mesma língua haveria menos conflitos.

A natureza do homem é mais complexa do que supõe nossa tendência a rotular as coisas. O Homo sapiens não carrega nas costas o fardo de um passado selvagem; o ser humano não é um “macaco assassino” como sugerem alguns antropólogos. E também não somos inatamente pacíficos. A seleção natural nos fez criaturas de comportamento flexível como nenhum outro ser da natureza, semelhamos a páginas em branco prontas a serem pejadas de conteúdo. Somos seres altamente sociais que não conseguiríamos sobrevir sem outros animais de nossa espécie ao redor.

Aqueles que acreditam que o homem é naturalmente agressivo, estão apenas fornecendo uma desculpa conveniente para a violência e para a guerra organizada. Na prática, essa desculpa aumenta a possibilidade de matanças e genocídios ocorrerem, se acreditamos que os homens são inatamente orientados para o conflito estamos endossando atitudes nesse sentido, estamos justificando o injustificável, estamos glorificando o niilismo. Guerras, conflitos e violência em geral são criações humanas e, como tais, passíveis de serem repensadas numa civilização que tenha como escopo sua perpetuação neste planetinha azul. Se o Homo for realmente sapiens deve pensar sobre isso. JAIR, Floripa, 19/04/11.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Cachorros

Acredito que nossa vida diária, além de constituir-se daquilo que aprendemos, daquilo que construímos e das escolhas que fazemos, é marcada por aqueles animais que nos acompanharam, em algum momento, nas boas e más horas. Cães, como animais de companhia ou de guarda, partilham a vida de muitas pessoas desde sempre, parece que o homem domesticou o lobo asiático, e o converteu nas centenas de variedades que o acompanham no processo civilizatório, para fazer do cão mais do que um bicho de estimação. Lembremos que, além de guarda e de companhia, o cachorro serviu e ainda serve para alguns povos como fonte de proteínas (Chineses versus Shar-pei) e, em alguns casos, para aquecer as pessoas durante o inverno. Praticamente todos nós somos marcados por episódios, eventos, períodos ou simples acasos que relacionaram nosso cotidiano com esses animais tão amigos e tão fiéis.

Como não sou diferente de ninguém tenho, desde muito pequeno, passagens em que os cães partilharam dos meus dias. Lembro que desde que nasci, ou melhor, logo depois que vim ao mundo, meu pai adquiriu um filhote de cão SRD (sem raça definida, eufemismo para vira-latas), pequeno, bem peludo, de coloração castanha que se assemelhava com um Spaniel. Zuque era o nome do bichinho, ficou velho em nossa casa e, como eu havia me criado sempre com ele, me parecia que o Zuque fazia parte do mobiliário; que era um membro da família que sempre estivera ali. O dia que morreu num triste acidente doméstico, me fez entender que cães não vivem para sempre, são seres inexplicavelmente mortais. Ele e eu tínhamos por volta de dez anos e o meu companheiro de todas as horas, Zuque, foi enterrado no quintal. Não muito tempo depois veio o Urso, outro vira-latas, só que com ares de Basset, tinha as pernas curtas. Urso era um cão malandro, gostava de rua, gostava passear pelo bairro e por lugares mais distantes, parece que fazia amizade com outros cães e ia visitá-los vez ou outra. Pobre Urso, costumava sair com meu pai para pescarias e caçadas que duravam o fim de semana, as vezes até três ou quatro dias, numa dessas excursões jamais voltou, nunca ficamos sabendo o que lhe aconteceu, mas pode ter se perdido ou ter sido mordido por cobra e morrido. Foi-se para sempre um cachorro esperto e muito querido.

Cresci e saí de minha cidade natal e, pelo que sei, em minha casa só existiam gatos, animais preferidos de minha mãe. Quando casei minha mulher ficava sozinha as vezes vários dias, então vimos necessidade de ter um cachorro para lhe fazer companhia e cuidar da casa. O ônus caiu sobre as costas do Rin-tim, cachorro viralatês puro que vivia com a família dela já há alguns anos. O Rin-tim era um animal buliçoso e meio rebelde, mas fazia a guarda da casa com eficiência, depois que enlacei ao redor do imóvel um anel de arame onde atrelei sua corrente. Ele podia rodear a casa 360 graus, e o fazia com grande energia. O Rin-tim foi devolvido à família dela depois que ganhamos o Kafu, pastor alemão capa preta. Kafu foi meu melhor cão, até mereceu um texto especial onde digo: “Suportava com estoicismo o banho de mangueira com xampu e desinfetante todos os sábados, mas, depois de secar-se, procurava sujar-se quase imediatamente, parecia querer dizer: “submeti-me ao banho de acordo com a vontade vocês, agora me sujo de acordo com a minha, e estamos conversados”. Era afeiçoado ao nosso primeiro filho, de pouco mais de um ano, o qual respeitava e, apesar de ser maior e mais pesado, jamais o afrontou. Morreu de “saudade” porque mudamos de cidade e o deixamos com outra família.

Num gesto ousado, em desacordo com meu orçamento doméstico, comprei por alto preço uma cadela Boxer com pedigree, Sandra Bréia. Mas nos papéis seu nome constava com sendo Nadja de Abatiá. Sobre essa boxer tenho a dizer duas coisas: meu filho mais velho era bebezinho e, contrariando o que se espera, a primeira palavra que pronunciou foi Bréia; A cadela veio a falecer de uma doença de pele que a deixava em carne viva, a pobre cachorrinha morreu ainda muito jovem. Depois veio a Rainha, a Collier mais buraqueira que já vi. Estragou todo o jardim o qual nós cuidávamos com desvelo, com suas escavações inconsequentes, parecia um autêntico cão-tatu se é que esse bicho existe. Em resultado desse comportamento foi doada a um amigo que gostava muito dela.

Já morando no Rio de Janeiro tivemos um Pastor dinamarquês do porte de um bezerro que viveu com a gente por dois anos até que o doamos para o Diniz, um amigo que tinha casa de praia em Piratininga e adorava cães grandes. Por último, na casa de Higienópolis onde havia uma quadra de vôlei e bastante espaço, trouxemos o Zimbo, vira-latas um quarto de Basset, filho da Xixa, uma meio Basset do meu irmão Ruy. Quis o destino, mais uma vez, que nos mudássemos de casa térrea para apartamento, daí o Zimbo foi morar com amigo meu, colega de trabalho. Acontece que o cãozinho era endiabrado, saía correndo em qualquer direção sem olhar onde, foi atropelado na Estrada do Galeão e acabou-se a história de cães adotados na minha vida.

Para finalizar, existe a Sissi, cadela Schnauzer do meu amigo Adson, a qual está apaixonada por mim, toda vez que me vê se derrete como manteiga aquecida. Ambos meus filhos têm histórias de cachorros em suas vidas, Adriano tinha uma cadela chamada Jess que era o animal mais inteligente que já vi. O Augusto possuía um Chiuauha, Zeeco que sofreu um acidente fatal depois que sua ex namorada o colocou no ombro de maneira irresponsável.

De qualquer forma, praticamente todos temos, tivemos ou vamos ter um cachorro na nossa vida, é uma decorrência natural depois que ambos, Homo sapiens e Canis Familiares caímos nos braços um do outro há dez mil anos e, pelo jeito, para sempre. JAIR, Floripa, 21/01/11.