quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os peixes


Nos anos setenta as contestações eram a moda, in era contestar e out conformar-se às regras, proibido proibir, era a palavra de ordem, a juventude paz e amor fazia questão de dizer-se contra, não importava ao quê. Eu também era jovem àquela época e me parecia normal que a geração baby boom, ou seja, os nascidos logo após a segunda guerra, estivesse cansada das restrições a que seus pais e avós foram submetidos, e as quais engessavam a criatividade, a liberdade de agir e pensar sem barreiras, sem ideologias tacanhas. Contudo, o que nossa juventude não enxergava é que nossa sociedade não existiria com liberdade total, a qual é uma utopia que só serve para teses de sociólogos deslumbrados ou para literatura engajada, como se diz.

Pois bem, desde que o homem, ente social que não consegue sobreviver a não ser em ajuntamentos com os seus, passou a compor tribos e depois aglomerados maiores como cidades, viu necessidade de regras que permitissem uma convivência se não harmoniosa, pelo menos com pouco atrito entre as pessoas. Não há alternativa, ou o homem cria as regras e autoridades que as façam cumprir, ou é o caos, a anarquia incontrolável que dissolve a própria sociedade. Aliás, não haver regras já é uma regra, portanto, torna-se um paradoxo: impor uma proibição que proíbe imposições é racionalmente incongruente. A respeito de uma civilização sem regras já escrevi sobre a Colônia Cecília, utópica sociedade anarquista que foi criada em minha cidade, Palmeira, no final do século dezenove, e que foi para o vinagre em pouco tempo depois que os pretensos anarquistas se desentenderam.

Então, todas as instituições sejam laicas ou religiosas têm suas regras, seus dogmas e regulamentos a que seus membros devem seguir e acatar sob pena de tornarem-se párias sociais ou de serem punidos. Principalmente as religiões são pródigas em não pode isso, não pode aquilo, e por aí vai.

Com o advento da semana santa e a proibição da igreja a seus seguidores de ingestão de carne, mas a liberdade de comer peixe, me fez lembrar de uma ocorrência em Angola no século XVIII. O interessante caso, o encontrei num livro que tratava das conquistas portuguesas na África. O padre Afonso Meira de Carvalhosa, pároco da freguesia de Caluquembe, encontrava-se frente a um dilema que lhe afligia sobremaneira e, para não incorrer em possível heresia que condenaria ao inferno sua alma imortal e as dos seus paroquianos, resolveu consultar autoridade maior sobre o assunto, para isso escreveu para o bispo, seu superior, em Portugal. Tratava-se da proibição ou não de os nativos convertidos poderem comer carne de hipopótamos na semana santa. Veja bem, HIPOPÓTAMOS! A resposta do Bispo português Dom Antonio Cintra foi que não haveria qualquer restrição: hipopótamos, ou cavalos d'água como eram chamados esses mamíferos pelos lusos, podiam sim ser degustados na semana santa, porque eram PEIXES! Afinal viviam na água, não é mesmo? Pode parecer piada antilusófona de brasileiro, mas a verdade é que está registrado como fato por um patrício, o autor do livro é português. JAIR, Floripa, 25/04/11.

5 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- Culpa da taxonomia. Hipo = cavalo, Potamos = Rio. Se o bicho não é cavalo mas vive em rios, deve ser peixe. Aliás... sereia é peixe ou mamífero?
- Abraços.

Leonel disse...

A classificação científica da espécie não tem nada a ver com a conveniência de afrouxar dogmas religiosos!
A questão, a julgar pelo que foi relatado, foi meramente e escolher entre "bater de frente" com costumes regionais consagrados ou fazer vista grossa, com uma justificativa qualquer, mesmo que absurda, como a de chamar hipopótamos de peixes.
Aliás, o que é mais absurdo: classificar hipopótamos como peixes ou condenar quem come carne na semana santa?
Em que se baseia essa premissa, que não passa de um costume, sem nenhuma sustentação determinativa na própria doutrina religiosa?
Mais um assunto interessante, trazido à baila pelo nosso brilhante resgatador de fatos!
Abraços!

J. Muraro disse...

Depois a gente faz piada de português e eles ainda ficam bravos!!

Anônimo disse...

Oi amigo,
Tens um meme no meu blog para vc^^

bjos!

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair o polímata –,
realmente as discussões das autoridades eclesiásticas eram bizantinas: carne de hipopótamo, ovo galado... quebra a norma da abstinência de carne. Imagina que essa era exigida em toda a quaresma e em todas as sextas-feiras do ano. Conheci um sábio sacerdote (¿ou sabido?) que escolhi um dos dias de abstinência para atender os convites para almoço. Como os visitados ignoram ou descumpriam a norma e serviam carne, ele sob alegação que não podia ser indelicados com os anfitriões, era ‘obrigado’ a se locupletar.
Obrigado pelas aulas que sempre temos aqui
attico chassot