quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Ginásio

Ginásio Estadualo Dom Alberto Gonçalves.

O nome oficial do estabelecimento de ensino era Ginásio Estadual Dom Alberto Gonçalves, conhecido simplesmente por Ginásio, como não havia outro na cidade era impossível confundi-lo, daí a simplificação: Ginásio. No sistema de ensino daquele tempo Curso Ginasial era complemento do Curso Primário que correspondia aos primeiros quatro anos de ensino obrigatório, aquele capitulado na Constituição como, “obrigatório e gratuito, obrigação do Estado”, mas que raramente atende a plenitude da definição. O Ginasial, também chamado secundário, compreendia quatro anos de ensino para capacitar o aluno ao ensino médio, mais três anos que, teoricamente preparavam o candidato ao ensino superior. Só que em Palmeira, depois do Ginásio, os alunos poderiam optar apenas pela Escola Normal, ensino médio que formava professoras para o curso primário, ou a Escola Técnica de Comércio a qual não sei que ensino ministrava.
Pois bem, o nome do Ginásio, Alberto Gonçalves fazia homenagem àquele que foi o mais ilustre filho da terra. Alberto Gonçalves nasceu em Palmeira em 1859 onde estudou as primeiras letras, em 1874, aos 15 anos, matriculou-se no Seminário de São Paulo, terminando seus estudos eclesiásticos em 1879, aos 20 anos de idade. Tornou-se diácono em 1887 e passou a lecionar por dez nos no mesmo estabelecimento que havia estudado. É autor de várias obras didáticas, entre elas: “Compêndio de Geometria” e uma “Gramática Latina”, excelentes livros adotados em todo o Paraná por muitos anos. Por isso, a homenagem a ele era compreensível e perfeitamente justa.
Então, depois que me “formei” no primário em 1957, ingressei no Ginásio depois de ser aprovado no exame de admissão ao ginasial, prova que compreendia conhecimentos de Aritmética, Geografia, História e Português. Era condição sine qua nom passar nessa prova, caso contrário teria que adiar seu ingresso para o próximo ano ou até ser aprovado algum dia. Como o exame era difícil – era uma espécie de vestibular de hoje - havia necessidade de preparar-se para ele e isso se fazia estudando durante as férias com professor particular, normalmente seu Diógenes, funcionário da prefeitura que cuidava da entrada do Cine Teatro Municipal, era o professor que procurávamos por ser o melhor e mais barato, isso eu garanto. Conseguindo ultrapassar o obstáculo da admissão, entrava-se no seleto clube do ginasianos e adotava-se o uniforme cáqui, constituído de jaqueta de brim com bolsos superiores e botões pretos, calça de mesmo material e cor, camisa também cáqui de tecido leve e gravata e sapatos pretos, era um desbunde. Sinceramente, aquele uniforme conferia uma distinção primorosa ao usuário, achávamo-nos os bambambãs do pedaço.
As aulas eram ministradas para classes no turno da manhã, para outros alunos a tarde e, finalmente, a noite para alunos maiores de quatorze anos, neste caso não havia necessidade de usar o glamoroso uniforme. Como eu era dimenor de quatorze anos entrei no turno da manhã.
O prédio do Ginásio estava localizado em uma esquina no término da segunda rua mais importante da cidade, rua XV de novembro. Tratava-se de um terreno grande que, além de abrigar o edifício, possuía duas quadras de jogos nos fundos e uma porção mais baixa onde existia uma plantação de milho. Não me perguntem o porquê dessa plantação, não sabia naquele tempo e não o sei hoje, quero apenas contar um caso.
Quando completei quatorze anos, porque tinha que trabalhar, fui matriculado no curso ginasial noturno. Mesmo ginásio, mesmos mestres, mesmos colegas, a única coisa que mudou foi o horário
das aulas e a escuridão. Não havia muitas lâmpadas nas ruas de Palmeira naqueles anos. No Ginásio então, era uma escuridão profunda no meio do milharal. Como as quadras de esportes ficavam juntas à plantação de milho, era comum bolas extraviadas caírem na plantação e alguém tinha que buscá-las naquele breu. Como eu era o que menos jogava, porque jogava muito mal, cabia a mim muitas vezes buscar a bola perdida no meio dos pés de milho. Numa dessas, com certo receio, entrei na plantação bem mais longe que vezes anteriores porque a bola de vôlei havia caído mais adiante. Ao chegar ao ponto que supus ser onde a bola se encontrava levei o maior susto: havia um homem sem uma perna segurando a bola numa mão, com um cachimbo na outra e olhando para mim. Antes que perguntem, não usava barrete vermelho, não era o Saci-Pererê, era mais como um pirata de historinhas, apenas lhe faltava o papagaio no ombro. Estranhamente, ao perceber a expressão tranquila do perneta, não mais senti qualquer medo ou susto, apenas olhei a bola e disse que viera buscá-la. Ela a entregou-me com um sorriso e nada disse.
Passados uns dias aquela figura não me saía da cabeça, me intrigava o motivo que levara aquele homem ao meio da plantação. Num dia em que não houvera uma aula porque o professor faltara, me afastei dos colegas com cuidado e entrei no milharal procurando o sujeito. Lá no mesmo lugar de antes estava o homem sem uma perna sentado num toco, fumando seu cachimbo tranquilamente. Perguntei se podíamos conversar e ele aquiesceu. Batemos um longo papo e fiquei sabendo de algumas coisas interessantes. O Sujeito chamava-se Deolindo e trabalhara na construção do Ginásio, havia perdido a perna num acidente de trabalho, recebera uma indenização por ter se tornado inválido e vivia no meio dos milhos por opção, era-lhe familiar dormir numa cabaninha de lona impermeável entre os pés da gramínea, fora agricultor grande parte da vida. A cabaninha encobria a entrada de uma escavação que lhe fazia as vezes de casa, constituída de sala quarto e cozinha. Pouco confortável com certeza, mas funcional e apropriada a quem não estava interessado em consumismo. Curioso, indaguei como sobrevivia, já que ninguém sabia de sua existência ali. Ele me encarou e disse que depois que a última aula acabava e o Ginásio fechava o prédio era só dele, banheiros, instalações sanitárias, a cantina, salas de aulas e dos professores o enorme porão, tudo, já que tinha a chaves desde o tempo da construção. Sentia-se o dono do prédio e lhe dei razão, ninguém mais tinha tanto espaço por tanto tempo com o ele. Costumava preparar alguma comida na cantina, tomar banho, ler na biblioteca e ouvir rádio na sala dos professores, estava muito a vontade. Com o tempo continuamos encontrando e acabei gostando de prosear com o perneta, ele era inteligente, tinha um vocabulário rico e era bem articulado, me ensinou muita coisa de ciências que era matéria que gostava de pesquisar na biblioteca.
O que posso dizer mais desse indivíduo “diferente” que optou pelo minimalismo de viver numa plantação de milhos e reduzir suas ações e necessidades a um mínimo quase nada? Deolindo, pelo que sei, jamais deixou o milharal e também nunca foi encontrado por mais ninguém, tornou-se, para mim, um gnomo do bem que ensinou-me lições inestimáveis de bem viver com pouco e ser feliz ainda assim. O perneta era um minimalista na pura acepção da palavra. O Ginásio continua lembrança viva em minha mente, não só pelos anos felizes em que lá aprendi matérias necessárias à vida acadêmica, mas, sobretudo, pelo ermitão do milharal que, sob quaisquer aspectos que se olhasse, era um espécime sui generis, digno de ser estudado por antropólogos sociais, desses que vivem à cata de excentricidades. JAIR, Floripa,14/01/11.

5 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- Esta, meu caro, é para guardar na memória... na minha, quero dizer, pois na sua já está enraizada.
- Talvez me brote da mente algo mais que um milharal.
- Abraços maximalistas.

- PS: Essa verificação de palavras é um saco!

Leonel disse...

Este é o meu amigo Jair, o Mark Twain de Palmeira!
Uma ótima narrativa. O seu amigo minimalista me lembra o personagem do Tom Hanks, no filme O Terminal.
O cara, vivendo neste horário alternativo, deixava seu milharal e tinha todas as instalações de uma escola à sua disposição!
Abraços!

Attico CHASSOT disse...

Muito estimado Jair,
muito gostosa tuas reminiscências do teu ‘ginasial’. Apenas um reparo. O curso primário era de cinco anos. O exame de admissão ao ginásio era independente da avaliação no curso primária. O ‘duende’ com quem privaste quase parece uma ficção. Emocionante.
Com admiração

attico chassot

JAIRCLOPES disse...

Caro Chassot,
Realmente o curso de admissão ao ginásio era independente da avaliação no curso primário, daí a necessidade de aulas particulares para se passar naquele "vestibular". Quando à duração do primário, tenho que discordar de você, tenho meu certificado de conclusão emitido ao fim do quarto ano do primário quando terminou aquela fase de aprendizado. Abraços, JAIR.

John Soprana disse...

Excelente trabalho. A preservação de memórias é uma experiência de eternidade. Parabéns! John Soprana