terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os males do fumo




Houve uma época em que o ato de fumar traduzia sucesso e glamour, até o Brasão da República Brasileira contém folhas de fumo ao lado de ramos de café. Mas nos últimos cinquenta anos a ciência se esmerou em provar que o hábito do tabagismo acarreta danos terríveis ao fumante. Mostrou cabalmente que o tabaco contém centenas de agentes nocivos à saúde, muitos deles causadores de câncer. Pulmões, garganta, lábios, língua, estômago, rins e bexiga são alguns dos órgãos que estão sujeitos à maior incidência de vários tipos da doença, com graus variados de morbidade e, muito pior, graus terríveis de sofrimento atrelado a despesas elevadas e degradação da qualidade de vida do doente e dos familiares, resultando quase sempre numa morte prematura e dolorosa.
Em consequência dos elevados custos sociais e materiais, muitos governos do ocidente, o do Brasil inclusive, resolveram atacar o hábito do fumo proibindo propaganda de qualquer espécie e banindo dos meios de comunicação qualquer referência que estimule o ato de fumar. Não há estatísticas que demonstrem a assertiva dessas medidas. A indústria fumageira se ressente dessas campanhas? Houve uma redução de fumantes a partir da extinção das propagandas? Não há divulgação dos resultados. O que se sabe com certeza, é que os órgãos responsáveis pelas campanhas antifumo atacaram apenas a ponta do consumo, isto é, o alvo dos ataques sempre foram os fumantes, a eles se dirigiu o grosso da artilharia que visa melhorar a saúde da população e, por tabela, diminuir os gastos dos sistemas de saúde com tratamentos de doenças provenientes dos males do fumo. Mas e a outra ponta, aquela que produz o fumo desde a semente até o produto final: cigarro? Há alguma preocupação governamental em esclarecer os males que plantar tabaco (Nicotiana tabacum) causa aos agricultores? Parece que não, milhares de famílias do campo estão morrendo por causa do fumo e nada se fala sobre isso.
Os fatos a seguir foram publicados por Sandreli Gross Costa no blogue
http://pinheiraldebaixo.blogspot.com baseados no trabalho de Fabianne Heemann, publicado no saite http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/22063 e nos dão uma ideia da dimensão do problema:
“Para produzir fumo de qualidade, o agricultor necessita aplicar múltiplas sessões de agrotóxicos, fica exposto às intempéries climáticas para fazer a colheita na maturação certa das folhas, tem o sono interrompido várias vezes a noite para cuidar dos fornos durante a secagem, passa horas em posições desconfortáveis para colher, transportar e classificar as folhas. Resumindo, trabalha feito “um burro de carga”. Esse excesso de trabalho, afeta o organismo dos agricultores acarretando problemas físicos e mentais (depressão)”.
Em outro trecho ela lembra: “A colheita e secagem acontecem simultaneamente. Essa é a etapa do processo produtivo mais cansativa, esgotante, penosa e desconfortável. Inicialmente o agricultor colhe o baixeiro (folhas rentes ao chão) e à medida que as folhas maduram colhe o restante. É preciso repassar de 5 a 6 vezes o mesmo pé de fumo. Esta etapa do trabalho acontece nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro. O fumicultor passa horas curvado, carregando maços pesados de folhas, sob o sol e calor insuportável, isso quando não é pego de surpresa pelas repentinas chuvas de verão. A nicotina presente nas folhas do fumo entra em contato com a pele dos agricultores e causa a “Doença do Tabaco Verde” provocando vômitos, dores estomacais, dores de cabeça, tontura, fraqueza, dificuldades para dormir, entre outros”.
E continua: “Após secas, as folhas são depositadas no paiol, onde mais tarde passarão por um processo de classificação por cor, tamanho e espessura. Em seguida são feitas as manocas ou bonecas (várias folhas da mesma classificação são amarradas umas nas outras pelo talo) e finalmente o fumo é enfardado. Essa etapa é rotineira e desconfortável, pois os fumicultores passam os dias sentados no chão, manuseando as folhas, aspirando pó e sentindo um cheiro ruim que só o fumo sabe ter. Depois de pronto, os fardos são enviados as empresas fumageiras que normalmente pagam um preço muito abaixo do esperado pelo agricultor”.
A certa altura a autora denuncia: “Em relação à saúde dos fumeiros como a gente diz por aqui, chega janeiro estão todos magros, amarelos e "soiudos" na linguagem popular, com o decorrer dos anos adquirem sérios problemas de coluna, artrite, câncer de pele, depressão. Este é um trabalho muito desvalorizado, mas infelizmente é o que garante a sobrevivência das famílias. Eles não têm opção melhor. Quem acende um cigarro não imagina quanto sofrimento ele provocou até chegar naquela caixinha”.
Então por que os agricultores continuam a se expor a uma atividade tão nociva nessa ponta como o é na outra, e ainda mais sendo mal pagos? Parece uma pergunta irrespondível, mas não é. A própria Sandreli aponta a resposta: “O trabalho com o fumo é quase todo manual e pode ser cultivado em pequenas e descontínuas áreas, terrenos, maquinários, insumos agrícolas possuem preços exorbitantes, muito além do que meus conterrâneos podem pagar. Além disso, embora as fumageiras paguem um preço ridículo pelo quilo de fumo, essa cultura é mais rentável em relação a de milho, feijão e outras, se estas forem plantadas em pequenas áreas”. Veja bem, mais rentável, é a expressão chave que deve ser considerada. Se plantar fumo rende mais que plantar alimentos essenciais, deve haver uma relação perversa entre o estímulo que as indústrias de cigarros oferecem e as facilidades que o poder público deveria oferecer para tornar a agricultura alimentar rentável, não é mesmo? Além disso, as autoridades fazem vistas grossas quando se trata de esclarecer e ajudar os agricultores. Será isso mais uma prova que as indústrias fumageiras continuam dando as cartas nas ações de combate ao fumo porque pagam pesados impostos ao governo? Será que essa prática de desestimular o consumo numa ponta e na outra ignorar as terríveis consequências do cultivo, é uma maneira de “compensar” as indústrias que fabricam cigarros? Uma espécie de atitude de “morde e assopra” tão ao gosto das demagogias ocidentais? Se assim for, é a política mais maquiavélica e covarde que se tem notícia neste país desde o descobrimento, e o Brasão da República é apenas mais uma comprovação de que no Brasil vidas sempre foram menos importantes que impostos. Com a palavra as autoridades. JAIR, Floripa, 28/11/11.

domingo, 27 de novembro de 2011

Batalha da Inglaterra





Batalha da Inglaterra é como se convencionou chamar os eventos de guerra aérea ocorridos sobre o Canal da Mancha e solo inglês durante os meses de julho e agosto até 15 de setembro de 1940, quando a Luftwaffe atacou em massa cidades e instalações industriais e militares inglesas que foram defendidas pelo Comando de Caças da RAF.
Talvez para os britânicos, na história de seu país, tenha sido um momento tão importante como a derrota da “Invencível Armada” espanhola em 1588 e o triunfo do almirante Nelson em Trafalgar sobre as frotas francesas e espanholas em 21 de outubro de 1805. Menos de três mil jovens pilotos – não mais de novecentos num só dia de combate – roubaram a cena de Hitler, quando parecia que a Grã Bretanha estava prestes a ser invadida pelos nazistas depois da aniquilação de sua Força Aérea. Sobre essa que foi, segundo opinião de analistas posteriormente, a batalha “que ganhou a guerra”, Wiston Chulchill cunhou a frase que a imortalizou: “Nunca tantos deveram tanto a tão poucos”.
Os “poucos” como passaram a ser chamados os pilotos de caça da RAF, talvez sem perceber, naquele dia fatídico para os nazistas, 15 de setembro, tenham derrotado Hitler. Este, incapaz de invadir e conquistar a Grã Bretanha, se voltaria para a União Soviética, sacrificando o exército alemão e, a partir daí, prolongando a guerra até que, finalmente, depois que os EUA forram arrastados para a guerra pelo ataque japonês a Pearl Harbor, deixando a Alemanha contra os três países industrializados mais poderosos do mundo.
Tudo isso viria a acontecer, e ninguém, mesmo Churchill que tinha uma visão aguçada dos acontecimentos futuros, poderia prever no outono de 1940, quando a Grã Bretanha estava sozinha. Mas o Comando de Caças, comandado pelo Tenente Brigadeiro Sir Hugh Dowding, e seus jovens pilotos, tinham preponderado sobre uma Luftwaffe muito mais poderosa e bem armada.
Não é minha intenção descrever aqui os acontecimentos dessa importante batalha, porque não será num espaço deste que caberá aquele pedaço da história. Contudo, centenas de livros foram escritos sobre os eventos, obviamente evidenciando a coragem e empenho dos pilotos de Spitfires e Hurricanes na batalha. Só que, por trás dos panos, os ingleses se deparavam com obstáculos terríveis como o de manter a produção das aeronaves de modo a suprir os aviões perdidos na batalha e aumentar a reserva visando as ações que fatalmente viriam; formar pilotos hábeis e capazes em tempo recorde para manter os esquadrões operacionais mesmo com as perdas diárias crescentes.
É claro que os radares ainda rudimentares usados pelos ingleses foram uma contribuição importante para a coordenação da defesa aérea. O fornecimento de gasolina de alta octanagem pelos EUA também permitiu o ótimo desempenho dos motores Rolls-Royce Merlin que equipavam os caças ingleses. E até o aproveitamento dos restos mortais dos aviões alemães abatidos sobre solo inglês foi útil para uso na indústria aeronáutica que fabricava Spitfires e Hurricanes. Assim, é quase certo que alguns dos aviões recém saídos das linhas de montagem ingleses tivessem, em parte, sido construídos com alumínio proveniente dos Stukas e Junkers alemães.
Outro dado importante é que cada perda alemã – homem e máquina – era definitiva, isto é, se o tripulante sobrevivesse normalmente tornava-se prisioneiro de guerra, e as máquinas tornavam-se sucatas para os ingleses; e as perdas britânicas eram em solo ou águas pátrias, de modo que o sobrevivente podia voltar à ativa e o material, sempre que possível, era reaproveitado.
Assim, uma ilha assediada e sozinha acabou derrotando a maior força aérea do mundo naquele momento, e definindo os rumos da guerra que acabou com o triunfo das democracias contra os nacionalismos exacerbados e cegos da Alemanha, Itália, Japão e seus aliados. JAIR, Floripa, 24/11/11.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Genética




Nesta quadra da história moderna onde a clonagem de vertebrados está bem além da ficção e já existe tecnologia para clonar um ser humano, vale contar um evento curioso que envolve fecundação. Alguns seres vivos se reproduzem de maneira diferente da nossa. Alguns moluscos e certas plantas têm como estratégia reprodutiva o hermafroditismo ou androgenia, cujos princípios consistem na existência de caracteres machos e fêmeas no mesmo indivíduo. Assim, para formação da primeira célula embrionária não há participação exterior de um indivíduo de sexo contrário. O novo ser é construído a partir do potencial genético adulto, uma espécie de gêmeo idêntico de quem o gerou.
Analogamente, a partenogênese, denominação de outro processo de reprodução consiste na substituição do gameta masculino (espermatozóide) por um gameta feminino chamado oosfera. Portanto, sem nenhuma participação do exterior a reprodução se completa. O suíço, Chales Bonnet, em 1940, descobriu partenogênese dos pulgões. Depois verificou-se o mesmo fenômeno em algumas espécies de abelhas, em alguns vegetais, nos ouriços do mar, nas estrelas do mar, nas rãs e em alguns peixes. Vários experimentos em laboratórios demonstraram que é possível provocar a partenogênese artificial em gatos, coelhos e outros mamíferos. Outros cientistas verificaram que óvulos de mamíferos cultivados sob certas condições de temperatura e meio de cultura fora do útero, iniciavam o processo de divisão dando o início à criação de um novo ser como se estive fecundado dentro útero. A respeito dessa descoberta, o Dr Goldman escreveu em 1966: “O nascimento sem pai é possível nos seres humanos...”.
Decorrente dessa especulação genética, apareceu na revista “Lancet” um artigo assinado pela especialista em eugenia Dra Helen Spurway, no qual dizia que “talvez” fosse possível uma mulher engravidar sem intervenção de espermatozóide. Daí, a coisa evoluiu para o sensacionalismo, a imprensa se apoderou da idéia e instituiu um concurso para que toda cidadã britânica que tivesse engravidado “virginalmente” se apresentasse, sua identidade seria preservada se assim as participantes desejassem. O escopo do “concurso” era encontrar fêmeas humanas para comprovar a tese que era possível a reprodução sem participação masculina.
Como a Europa estivera em guerra, milhares de mulheres – adúlteras e abandonadas por namorados - viam no concurso a possibilidade de “apagar” traições a seus maridos e companheiros enquanto estes estiveram no front. Dezenas de milhares de mulheres com filhos se apresentaram. Começaram então os testes que consistiam primeiramente uma entrevista rigorosa e em prova de compatibilidade sanguínea. Somente dezenove mulheres restaram depois disso. Em seguida veio o teste de saliva que reduziu o grupo a apenas quatro candidatas. O último teste tratava-se enxertos de peles cruzados. A mãe recebia um pedaço da pele do rebento e este um da mãe, se houvesse rejeição se comprovaria a incompatibilidade, em caso contrário o filho era considerado fruto da partenogênese natural. Três das concorrentes foram eliminadas e restaram a senhora Emminaire Jones e sua filha Monica, gerada em circunstâncias anômalas.
Em 1944, Emminaire estava com enjôos constantes e se sentia muito mal, seu noivo estava em combate e ela era virgem, procurou um médico e este constatou que ela estava grávida de três meses. Ela havia passado o tempo todo servindo com enfermeira onde só existiam mulheres no corpo médico, e ela nunca havia feito qualquer coisa que justificasse a gravidez. Emminaire casou com seu noivo, a criança nasceu e ela teve uma depressão nervosa, não entendia o que poderia ter acontecido. Os exames formais verificaram que Monica não tinha nenhum “elemento” estranho ao de sua mãe. O Dr Stanley Balfour-Lynn, juntamente com o famoso professor J. B. S. Haldane divulgou esse caso insólito para o mundo. Ele julgava um caso autêntico de partenogênese natural. Por outro lado, os cristãos que creem no dogma da virgindade de Maria e se sentem desconfortáveis com uma fecundação celestial, acharam um meio de justificar sua gestação.
Pois bem, e como ficou o resto dos cientistas do mundo? A resposta é que ninguém achou que o caso merecia qualquer investigação mais profunda, os testes foram imprecisos e não comprovavam nada, segundo os cientistas “sérios”. Assim, o caso caiu no esquecimento e não mais se falou na possibilidade dessa tal partenogênese natural humana. Só que, em 2005, lá mesmo na Inglaterra, o Dr Eugene Lightorn, geneticista do laboratório “London Medical Genetic Center”, leu o artigo em uma revista da década de sessenta e resolveu procurar as amostras de sangue dos testes, se estas existissem. Para sua surpresa, um congelador do próprio LMGC continha os sangues das mulheres datados e identificados. Ele procedeu ao exame de DNA das amostras e verificou aquilo que ninguém acreditava: Os DNAs da mãe e filha eram perfeitamente compatíveis, como costumam ser DNAs de gêmeos idênticos e de clones de animais e plantas. Agora, diante dessa descoberta, está na hora de os geneticistas darem uma boa “olhada” na possibilidade de existir esse fenômeno, até porque a ciência é pródiga em surpreender a partir de eventos inesperados e fora da “normalidade”. Será este o caso? JAIR, Floripa, 22/08/11.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sobre poder




Na história da humanidade registra-se um período em que os homens viviam em bandos familiares pouco organizados, em atividade de coleta e caça de alimentos, eram os caçadores-coletores. A economia de caça e coleta implicava em viver em pequenos bandos, o número de indivíduos era limitado pela disponibilidade de fontes alimentícias e pela necessidade de mobilidade. Há fortes indícios que esse número girava em torno de vinte e cinco indivíduos incluídos adultos e meia dúzia de crianças já andando. A própria estrutura do bando excluía qualquer apropriação de áreas de bandos vizinhos e de propriedade de bens. O ônus de propriedades móveis e de invasão de áreas de coleta de outros era maior que os benefícios que poderiam advir de tais opções. Claro que é razoável supor que em tempos de escassez pode ter havido conflitos entre os bandos, mas as indicações arqueológicas depõem contra essas confrontações. Mas, quando a necessidade ou a vontade ditaram o estabelecimento de aldeias, foi que essas populações vizinhas encontraram motivos para cobiçar os recursos de seus contíguos. Ao contrário do modo de vida de caça e coleta, onde os pequenos bandos são mais apropriados para explorar fontes de alimentos, a concentração de alimentos mediante cultivo e pastoreio permite que populações sedentárias cresçam. As aldeias podem tornar-se cidades, com todas as implicações que esses aglomerados apresentam. Se uma aldeia agrícola decide apoderar-se das plantações de uma aldeia vizinha, ela se beneficiará porque sua própria população poderá expandir-se por causa do alimento adicional. Está claro que haveria antes o detalhe de uma batalha. Mas, desde que os benefícios superassem as perdas supervenientes, a aldeia que vencesse o conflito se colocaria numa posição vantajosa à custa dos vizinhos.
Com o advento de povoações permanentes ocorre também o nascimento do materialismo. A vida sedentária nas aldeias permite a acumulação de objetos não essenciais, é e com esses objetos que costumamos associar, o mais das vezes, os símbolos de status e riqueza. A experiência nos mostra que a acumulação de riquezas provoca o desejo de novas riquezas, e, em nenhum momento, essa sede de bens é saciada. Ou seja, ninguém é rico o suficiente para desprezar aquisição de mais e mais bens. O fenômeno vai além do simples acumular coisas materiais, como um fim em si mesmo: pode ser definido como um psicomaterialismo, fenômeno parecido com a cobiça do poder. Riqueza e poder são irmãos xifópagos. E mais, o poder só é atrativo quando há um grande número de pessoas sobre as quais exercê-lo. A história recente do século passado nos dá a medida que essa compulsão pelo poder pode ser maléfica. Com toda evidência, as possibilidades de procura, de manutenção e de expansão do poder foram muito maiores após a revolução agrícola do que antes. E a história nos mostra que há dois caminhos básicos para a expansão do poder: manobras políticas habilidosas ou operações militares bem sucedidas. Mais uma vez nos lembramos de Clausewitz: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.
Concordando com Clausewitz, já que a natureza dos dois fenômenos é a mesma, ambas, guerra e política, sempre estão concorrendo para a tomada, aumento ou manutenção do poder. Ainda mais, como poder e materialismo na forma de riqueza são irmãos xifópagos, não há contradição em afirmar que a guerra que está a serviço do poder, e também a política, ambas têm como objetivo aumento da riqueza, seja de nações seja de indivíduos. Meio complicado, mas intrinsecamente verdade. Poder gera riqueza que para ser mantida ou ampliada serve-se da guerra e/ou política para tal. Maquiavel na mais pura acepção: os meios, guerra e política, justificam os fins, poder e riqueza. Fico fascinado como pensadores antigos já tinham uma sintonia fina para perceber os grandes temas sócios antropológicos e os meios para alcançá-los que predominariam nossa sociedade atual. JAIR, Floripa, 21/11/11.

sábado, 19 de novembro de 2011

Abelhas






Desde que os antigos humanos trocaram o modo de vida de caçadores-coletores para pastores-agricultores, as primeiras colônias se viram compelidas a domesticar animais e plantas para facilitar a sobrevivência, principalmente porque a nova configuração social acarretou maior densidade populacional. Assim, muitas plantas, muares, ovinos, bovinos, galináceos e insetos, foram compulsoriamente atrelados ao modus vivendi humano nas aldeias e tribos. Obviamente isso não aconteceu a um só tempo, nem num mesmo lugar.
Com facilidade, costumamos associar os mamíferos e aves à nossa civilização por se tratar de animais “visíveis” que não deixam dúvidas que estão ali. Contudo, dois pequenos insetos da maior importância convivem conosco a quase tanto tempo quando os outros animais domesticados: bichos-da-seda e abelhas.
Os bichos-da-seda para se reproduzirem constroem casulos onde colocam seus ovos. Os humanos usam essas ootecas para tecer a seda. Os historiadores acreditam que a produção de seda teve início na China, por volta de 3.000 a.C., revelando que as pessoas já deviam ter começado a domesticar o bicho-da-seda por volta dessa época. Em 2009, uma equipe de cientistas liderada por investigadores chineses comparou o genoma de bichos-da-seda selvagens e de produção industrial tendo concluído que a domesticação deste animal, há cinco mil anos, resultou de um evento único embora se desconheça se os animais fundadores foram recolhidos num único lugar. Desde o início esses insetos têm contribuído em progressão geométrica para a indústria de vestuários e confecção em geral.
Já, com relação às abelhas, há que se notar que antes do século dezenove as populações dependiam do mel para adoçar suas beberagens e comidas, e ainda não existia açúcar industrial. As pessoas conseguiam mel em colméias e não é preciso dizer que se arriscavam a levar doloridas ferroadas para consegui-lo. As abelhas, segundo registros mais antigos, foram domesticadas no oriente por volta de três mil anos atrás.
No século dezenove, o reverendo americano Lorenzo Lorraine Langstroth melhorou significativamente a estrutura das colméias para permitir métodos mais eficientes para a produção do mel. De então para cá, a indústria melífera aperfeiçoou-se cada vez mais e se tornou indispensável para os modos de vida escolhidos pelos homens tanto do oriente como do ocidente. O mel entra na composição de centenas de alimentos, além de ser grandemente utilizado na indústria farmacêutica. Cera, própolis e geléia real são subprodutos também muito explorados pela apicultura.
Com o desenvolvimento da agricultura em larga escala, verificou-se que a apicultura tinha mais uma utilidade ainda. A polinização. As grandes plantações se valem das abelhas e outros insetos para aumentar a produtividade, plantas fecundadas são mais prolíferas e, assim, abelhas criadas junto às culturas, contribuem significativamente para plantas mais produtivas. É consórcio que traz benéficos incalculáveis à agricultura.
Então, por milênios, as abelhas conviveram em relativa paz com homens e a eles deram o produto de seu trabalho sem maiores dissabores, e os humanos esperavam contar com esse serviço por mais alguns milênios talvez. Só que, parece, essa relação está entrando em declínio, vai deixar de existir dentro de muito pouco tempo se nada for feito.
Desordem de Colapso de Colônia (CCD em inglês) é um fenômeno em que abelhas operárias de uma colméia de abelhas melíferas européias e africanizadas, de repente desaparecem. Enquanto tais desaparecimentos ocasionalmente ocorriam ao longo da história da apicultura, o termo CCD foi aplicado pela primeira vez a um aumento drástico no número de desaparecimentos de colônias de abelhas europeias nos EUA no final de 2006. Esse colapso de colônias é alarmante porque, como dissemos, muitas produções agrícolas em todo o mundo são polinizadas por abelhas.
Alertados para o fato, apicultores europeus observaram fenômenos semelhantes na Bélgica, França, Holanda, Grécia, Itália, Portugal e Espanha, e relatórios iniciais também vieram da Suíça e da Alemanha, embora em menor grau. Enquanto na Irlanda do Norte relatórios dão conta de um declínio superior a 50%. Outros casos possíveis de CCD também têm sido relatados em Taiwan desde abril de 2007. No Brasil, interior de São Paulo, também se fala em grandes perdas nos apiários, embora não haja relatórios conhecidos a respeito.
A causa ou causas dessa síndrome ainda não são compreendidas. Em 2007, algumas autoridades atribuíram o problema a fatores biológicos como ácaros e doenças de insetos (isto é, patógenos, incluindo Nosema apis e vírus de paralisia aguda de Israel). Outras causas propostas incluem mudanças ambientais por pesticidas que podem levar a desnutrição dos insetos. Mais possibilidades especulativas têm incluído modificação celular por radiação.
Também foi sugerido que pode ser devido a uma combinação de muitos fatores e que nenhum fator é a causa principal ou central. O relatório mais recente (USDA - 2010) afirma que: "com base em uma primeira análise de amostras coletadas em abelhas mortas, tem-se notado o elevado número de vírus e outros patógenos, pesticidas e parasitas presentes em colônias que sofreram CCD. Este trabalho sugere que uma combinação de fatores ambientais pode desencadear uma cascata de eventos e contribuir para debilitação dos insetos de forma que estes ficam vulneráveis a outras doenças”. Contudo, não há qualquer convergência de resultados nos estudos efetuados até o presente e, principalmente, não se sabe o porquê dos eventos. O que se sabe com certeza, é que as abelhas continuam desaparecendo e essa síndrome está se espalhando pelo Planeta e não há nenhuma solução a vista a médio e curto prazo. Cientistas preocupados projetam que dentro de uns vinte anos não mais haverá abelhas produzindo mel industrialmente. Quem viver provavelmente terá muito menos doçura em sua vida então. JAIR, Floripa, 19/11/11.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A peste



No princípio parecia apenas que um número maior de pessoas estava gripado, os acometidos por um possível vírus apresentavam sintomas iguais ou parecidos com os da gripe, como irritação na garganta, coriza, alguma obstrução nasal e, em alguns casos, uma febre leve.
Palmeira era uma cidade pequena e as ocorrências, fatos e eventos que lá se passavam eram de conhecimento de todos, como se pertencessem a uma grande família. Então, quando os casos de “gripe” começaram a levar gente ao único hospital do burgo em busca de tratamento, os dois médicos e as irmãs de caridade que atendiam os doentes perceberam que eles estavam mais prostrados do que se poderia esperar se estivessem apenas gripados. Toda a cidade tomou conhecimento que mais gente e com gravíssimos sintomas estavam baixando aos leitos hospitalares.
Mais ou menos no segundo mês depois que os primeiros casos apareceram quase um terço da população, inclusive um dos médicos, estava acometido dessa doença que passou a preocupar tanto as autoridades quando os cidadãos que ainda não tinham sido contaminados. Pelo que se sabia era uma doença virótica ou bacteriana contagiosa, porque era comum pessoas de uma mesma família ou que conviviam em ambientes confinados como salas de aula ou escritórios, apresentassem sintomas em cadeia. As primeiras mortes vieram logo a seguir, mortes horríveis com os doentes assumindo posições arqueadas, olhos esbugalhados, boca aberta e gritando como se o fogo do inferno os tivesse queimando, parecendo possuídos por demônios. Em um mês, mais da metade dos cidadãos já estavam doentes e os coveiros passaram a fazer horas extras para enterrar os mortos. Notadamente, a doença não escolhia classe social, idade ou sexo, ainda que os primeiros mortos tenham sido pessoas idosas e crianças muito novas.
O prefeito apressou-se em decretar estado de vigilância e decretou que escolas fossem fechadas, dispensou os funcionários públicos municipais e sugeriu que todos os serviços que não fossem essenciais deixassem de funcionar.
Muitos dos mais ricos arrumaram as malas e se mandaram para Curitiba ou outra cidade onde tivessem parentes ou amigos. Aos pobres coube apenas se trancar em casa tanto quanto possível, e rezar para que a doença não os alcançasse. Houve dois ou três casos nos quais todas as pessoas de uma mesma família confinada foram atacadas morreram e só se tomou conhecimento disso quando os corpos começaram a exalar mau cheiro.
O padre, alguns pastores, beatas e outros devotos faziam penitências, rezavam, oravam e pediam perdão por pecados nunca cometidos e por faltas nunca acontecidas. Apareceram três pregadores místicos que bradavam pelas ruas vazias dizendo que aquele era um castigo de Deus pelas iniquidades daquele povo incréu e pecaminoso. Se alguém acreditava nisso nada dizia, mas era aparente o medo e a desconfiança. Será que Deus estava castigando a todos por algo que alguns fizeram? Será que o Criador havia escolhido aquela cidade para servir de exemplo para uma humanidade pecadora, cruel e belicosa? Foi nesse clima que alguém ressuscitou a palavra PESTE. Para a crendice do povão ignaro palmeirense, peste significava muito mais que uma grave doença ocasional, ou mesmo um epidemia inesperada e fatal; peste significava algo determinado por uma força superior como punição; peste era penitência por pecados cometidos, e isso mexia com o imaginário daquelas pessoas simples. Então, a partir da lembrança da palavra, muitos passaram admitir que estavam sendo punidos com a peste. Por estranho que pareça, o fato de agora saberem o que era e qual a finalidade do mal, fez com que alguns se conformassem com o destino e, com humildade, admitissem que eram pecadores e deviam ser punidos.
Mas a peste continuou ampliando seu alcance e mortalidade, mais gente foi infectada e muitas mais morreram. Os cemitérios já não comportavam tantos defuntos e as autoridades liberam outros dois terrenos públicos para os sepultamentos, que agora se faziam até a noite. Calculava-se que um terço dos cidadãos havia falecido, outro terço estava doente e o terço final rezando e tremendo em suas casas. Dos que partiram, depois se soube, também um terço havia deixado de viver nessa mesma época.
Ainda que o apelo das autoridades médicas tivesse sensibilizado a Secretaria de Saúde do Estado, e esta tenha enviado uma equipe médica e um hospital de campanha cedido pelo Exército, os casos da doença misteriosa só aumentavam e o número de mortos também. Curiosamente, ninguém que tenha vindo para a cidade para trabalhar ou que por lá tenha passado adquiriu a doença. Parecia uma epidemia seletiva, só atacava os moradores de Palmeira. Mas, assim como havia começado seis meses antes sem trombetas ou foguetórios, saiu de cena de mansinho sem deixar saudades, acabou. Os últimos doentes sararam de um dia para outro e os que não haviam ficado doentes saíram de suas casas e perderam o medo. Palmeira, agora rarefeita de gente, começou lentamente e se recuperar da catástrofe, era uma cidade convalescente e com outro espírito, como fênix renascida, purificou-se.
O formoso burgo, que já era conhecido como Cidade Clima do Brasil, agora aguilhoado pela mórbida moléstia, podia ser chamado de Cidade Bem-aventurada do Brasil, a bondade, o denodo, o altruísmo, o bom mocismo, a benevolência, a filantropia, a caridade, a prodigalidade, a piedade, o brio, a consideração, a reflexão, a tolerância, a candidez, a moralidade, a nobreza de caráter, o pundonor, a gentileza, a compostura, a fineza, a probidade, o esmero, a maturidade, a sobriedade, o recato, o equilíbrio, a calma, a elegância no trato aos outros, a prudência e a lealdade passaram a ser a marca registrada dos habitantes daquela comunidade. Todos se tornaram mais felizes e passaram a contagiar de felicidade quem viesse morar na cidade.
Muitos anos depois, cronistas relataram que mais da metade da população havia perecido, dos que sobraram mais da metade mudou-se para sempre. Os que ficaram formaram uma pequena sociedade extremamente coesa, honesta e solidária, a mais exemplar do país a qual até hoje pode ser citada por suas realizações humanitárias. Palmeira é a melhor cidade do Brasil desde então. JAIR, Floripa, 16/09/11
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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Brasil na guerra

Início da década de quarenta, Brasil vivendo sob a ditadura de Getúlio Vargas que não escondia sua preferência pelos modelos doutrinários ditatoriais de Hitler e Mussolini na Alemanha e Itália. A guerra na Europa se fazia entre os nacionalismos exacerbados de nazistas e fascistas contra os aliados que representavam as democracias. Getúlio fazia ouvidos moucos para vozes que o exortavam a se aliar às democracias contra as ditaduras; nas águas territoriais brasileiras, navios mercantes eram atacados e afundados por submarinos alemães e italianos e centenas de vidas civis eram perdidas numa guerra que não era nossa. A extrema direita brasileira, representada pelos “camisas verdes” (integralistas) capitaneados por Plínio Salgado, aproveitava o clima de indignação oriundo das unidades mercantes torpedeadas nas nossas costas, para divulgar propaganda enganosa no sentido que eram os americanos que estavam afundando nossos navios para nos obrigar a entrar na guerra ao lado deles. A insinuação não passava de bobagem maldosa para obrigar o Brasil a entrar na guerra ao lado dos alemães e italianos, mas existiam pessoas que acreditavam.
O presidente do EUA era Roosevelt, conhecido por FDR, o qual, diante do espraiamento da guerra para o norte da África, necessitava de bases para suas forças, mais próximas dos campos de batalhas. Diante disso, FDR insistiu junto a Vargas para que este cedesse bases aéreas em solo brasileiro, principalmente no norte e nordeste, para que suas forças pudessem transpor com mais facilidade o oceano Atlântico, rumo à África transportando tropas, armas e suprimentos. Pressão dos aliados de um lado e da opinião pública de outro, fizeram Vargas ceder. Numa jogada política esperta, da qual Getúlio era mestre, ele “trocou” as bases brasileiras e a entrada do país no conflito, por uma usina siderúrgica de última geração. A Companhia Siderúrgica Nacional, CSN, foi cedida por Roosevelt e instalada em Volta Redonda onde se encontra funcionando até hoje, embora privatizada.
Tendo aceitado entrar na guerra junto aos aliados, o Brasil preparou tropas a partir de 1943 para enviar ao palco de batalhas contra os alemães na Itália, o que se deu em junho de 1944. Os pracinhas, como eram chamados os soldados expedicionários, saíram-se muito bem nas tomadas dos montes Cassino e Castelo na região dos Apeninos. Vibrantes, destemidos e arrojados os soldados brasileiros, equipados pelos americanos com materiais e vestimentas modernos, enfrentaram o frio europeu e os alemães com a mesma bravura. O cessar fogo na Europa se deu em maio de 1945. Nessa guerra de menos de oito meses, a FEB perdeu 443 homens, entre soldados e oficiais, e mandou para os hospitais da retaguarda perto de 3.000 feridos. Por outro lado, fez 20.573 prisioneiros alemães, inclusive dois generais.
Finda a guerra, resolveu-se construir um cemitério na região da Toscana, para reunir num único local, com quadras apropriadas e devidamente demarcadas, os restos dos mortos nos combates do teatro de operações de guerra italiano. Ao final do conflito, em maio de 1945, havia 443 sepultados nesse local. O “Cemitério Militar Brasileiro”, pela proximidade da cidade ficou conhecido como cemitério de Pistóia. Em outubro de 1952 foi criada uma comissão de repatriamento dos mortos brasileiros sepultados no Cemitério de Pistóia, o que acabaria acontecendo apenas no ano de 1960. Hoje os restos mortais dos militares jazem sob o Monumentos dos Pracinhas, no aterro do Flamengo, Rio.
Só que repatriamento dos restos mortais dos mortos no campo de batalha foi meio tumultuado, tornou-se objeto de uma disputa quase infantil entre a FAB e Marinha Brasileira. A Armada queria trasladar as urnas funerárias de navio, e a FAB estava convencida que o traslado em aviões seria melhor. Talvez pelo fato de a Marinha não ter participado de batalhas na Europa e seus mortos serem oriundos dos ataques de submarinos aqui mesmo no Brasil, ficou estabelecido que as urnas, em vez de virem para o Brasil em navios de guerra, seriam transportadas por três aviões C-54 da FAB. Por azar da FAB e certa discreta alegria mórbida da Marinha, nesse traslado quase ocorreu uma tragédia de graves consequências num evento pouco divulgado, menos ainda lembrado. O percurso aéreo Itália – Rio de Janeiro previa, entre outras, uma parada técnica em Lisboa. Nas manobras de aproximação do Aeroporto de Lisboa, um dos aviões sofreu um acidente no pouso, bateu, quebrou a asa e foi tomado por um incêndio. Alguns tripulantes e passageiros tiveram ferimentos leves, mas todos ficaram profundamente traumatizados com o acidente e com os possíveis danos à preciosa carga que levava o avião. As urnas não sofreram grandes danos, mas tiveram que ser reparadas para prosseguirem viagem em outra aeronave.
O episódio ficou conhecido como a segunda morte dos pracinhas, mas, pelo fato de ter ocorrido em Portugal, deu azo para que os eternos gozadores cariocas veiculassem a seguinte piada politicamente incorreta: “Um pequeno avião da FAB sofreu um acidente em Lisboa e as autoridades portuguesas informam que entre mortos e feridos já resgataram mais de quatrocentos corpos”. A heróica passagem dos militares brasileiros pelos campos de batalhas da sangrenta segunda guerra acabou sendo objeto de descontraída alusão a anedótica pouca inteligência de nossos irmãos lusos. JAIR, Floripa, 11/11/11.

sábado, 12 de novembro de 2011

O Lambari




Lambari é a designação popular de várias espécies de peixes de águas temperadas e tropicais do gênero Astyanax, família Characidae, (a mesma família dos acarás) encontráveis em praticamente todos os rios, lagoas, córregos, açudes e represas do Brasil. Há quem afirme que é o peixe mais abundante do país.
O tamanho médio de um espécime adulto varia desde cinco centímetros até mais de quinze e essa variação se deve a - além de fatores genéticos - duas causas que afetam todos os peixes: peixes crescem menos ou mais dependendo da quantidade de alimentos disponíveis; e, ao contrário da maioria dos vertebrados, eles crescem a vida toda, não há uma “maioridade” na qual eles deixem de desenvolver-se, assim, num mesmo local sob as mesmas condições, um peixe maior é quase certamente mais velho que um menor. Como prova desse crescimento ininterrupto, já vi um excepcional exemplar conservado em formol pesando seiscentas gramas, enquanto a maioria dos lambaris “grandões” não passa de cem gramas. O lambari possui corpo prateado, nadadeiras e cauda com cores que variam conforme as espécies, sendo mais comuns os tons amarelados, avermelhados ou tendentes a preto.
O fato de esse peixe ser o mais disseminado e, também, por ser onívoro, isto é, gastrônomo generalista que come qualquer coisa vegetal ou animal, faz com que seja apreciado como objeto de pesca artesanal e amadora. Praticamente todo garoto do interior já teve a oportunidade de, munido com um caniço de bambu, linha, anzol e uma lata de minhocas, pescar nos riachos, açudes, lagoas ou rios disponíveis nas proximidades de sua cidade. Não conheço ninguém de minha geração que não o tenha feito, é um “esporte” nacional muito barato e prazeroso, embora o peixe não possua qualquer valor comercial. Não foram poucas as ocasiões durante minha infância e adolescência que, com maior ou menor sucesso, percorri quilômetros ao longo dos riachos palmeirenses lançando a linha em suas águas corredeiras, frias e piscosas em busca desse prêmio cobiçado.
Pois bem, a pesca amadora do peixinho quase sempre se reveste também do consequente prazer culinário. O lambari em geral é frito em óleo quente até apresentar cor dourada e consistência crocante. Neste caso é apreciado com grande satisfação pelos pescadores como aperitivo, e consumido com cerveja. A única inconveniência para seu consumo deve-se ao trabalho em prepará-lo para a fritura. Descamá-lo, cortar a cauda e nadadeiras e eviscerá-lo é uma tarefa que a muitos pode parecer não valer a pena: muito trabalho para um petisco tão pequeno! A realidade é que o prazer de degustar um acepipe tão saboroso está além da trabalheira de prepará-lo. Só quem já teve oportunidade de fazê-lo sabe a delícia que é.
Além do uso culinário consagrado, o peixe também tem outras utilidades reconhecidas. Para pescadores praticantes de pesca de peixes maiores, o lambari é isca de ótima qualidade. Para usá-lo como engodo eficiente, colocasse-o vivo ou morto num anzol grande para atrair jundiás, traíras e outros peixes carnívoros. Mas, a utilização mais inusitada e curiosa que sei do peixinho, vi num programa de televisão, num “Globo rural”. Uma pequena comunidade no interior do Mato Grosso, pega grande quantidade com uma peneira confeccionada de bambu, e cozinha em água os peixinhos numa panela grande até os corpos se desmancharem restando somente escamas, ossos e uma camada grossa de gordura na superfície da fervura. Essa gordura, depois de separada dos restos, é chamada de manteiga de lambari e é utilizada na culinária em substituição aos óleos de cozinha. Segundo o programa televisivo, essa “manteiga” não tem cheiro e acrescenta um ótimo sabor à comida, além de não ser onerosa para o orçamento familiar de famílias de baixa renda, é claro.
Assim, a pesca do peixinho mais abundante da fauna brasileira, torna-se, além de ótimo passatempo para a gurizada do interior, uma fonte de proteínas para populações de baixa renda e uma alternativa culinária de ótimo resultado e até alguma sofisticação para comunidades onde lambaris existem em quantidades apreciáveis. Por tudo isso, está longe de ser um despropósito eleger o nobre lambari – que já tem uma cidade em Minas batizada com seu nome - como o peixe fluvial mais notável e importante para a população brasileira que não aparece nas colunas sociais e tampouco sabe o que é salmão. JAIR, Floripa, 25/10/11.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Sobre dor


De acordo com a International Association for the Study of Pain: "Dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada com danos reais ou potenciais em tecidos e órgãos, ou assim percebida como tal, isto é, por se tratar de uma experiência também emocional, pode existir dor sem um real dano a qualquer parte do corpo”. E a definição continua: “A incapacidade de comunicar verbalmente não exclui a possibilidade de que um indivíduo esteja sentindo dor e necessite tratamento para alívio da mesma”, isso significa que os animais ditos irracionais, embora não possam expressar, sentem tanta dor quanto os humanos.
A dor é absolutamente subjetiva. Cada indivíduo aprende o uso da palavra dor através de experiências próprias relacionadas com traumatismos no início da sua vida. A dor é individual, particular e não pode ser delegada nem dividida, não há dor coletiva nem compartilhada. Os analgésicos e anestésicos nasceram da imperiosa necessidade de afastar dos humanos essa tão desconfortável sensação.
Os cientistas verificam que os estímulos que causam dor são os mesmos que causam provável dano nos tecidos. Portanto, a expressão “a dor é nossa amiga” se aplica plenamente, ao sentirmos o desconforto dessa sensação, procuramos evitar a causa da dor e, em consequência, a causa do dano. Para provar, basta aproximarmos a mão da chama de uma vela. Percebemos que, por reflexo, retiramos a mão tão logo sentimos dor, assim evitamos o dano da queimadura.
Por outro lado, dado a subjetividade da dor e por essa subjetividade tornar inviável a construção de um “dolorímetro” confiável que enquadre a intensidade das dores numa escala que possa comparar dores originadas em órgão e tecidos diferentes, nascem polêmicas acerbadas sobre qual ou quais as dores mais doloridas, por assim dizer.
A Bíblia é pródiga em associar dor ao parto, em Romanos (8:22) podemos ler: “a natureza criada geme até agora, como em dores de parto”. Além de, em Gênesis (3:16) está dito com referência à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores” . Ora, seja pelo fato da dor do parto ser “bíblica”, ter pedigree, por assim dizer, ou por alguma razão obscura qualquer, convencionou-se que essa é a dor mais intensa que pode acometer um ser humano. Só que, quem já teve cálculo renal, afirma de pés juntos que essa é a dor Primus inter pares, que não há dor que se compare a ela. Ainda há um adágio meio machista que afirma: “Quem acha que a dor do parto é a pior, é porque nunca levou um chute nos testículos”. E a contrapartida feminista: “Quem afirma que chute na genitália é a dor mais cruciante, tente defecar uma bola de futebol para ver”. Dessa forma, ficou estabelecido um impasse. Como já dissemos, não existe um dolorímetro, então cada um pode afirmar o que achar conveniente, em outras palavras pode puxar a brasa para sua dor. Provavelmente, as mulheres vão continuar sentindo as terríveis dores que acompanham o nascimento de mais um rebento, e os homens se queixando como bebês chorões quando levarem uma bolada na região pélvica.
Mas existe uma tribo no México que resolveu esse imbróglio de modo brilhante, criativo, com equipamento de baixíssima tecnologia e resultados surpreendentes. Os Huichol acreditam que a dor do parto deve ser partilhada por aquele co-responsável pela gravidez da mulher. Assim, a mulher em trabalho de parto agarra um cordão que fica amarrado com firmeza nos testículos do marido, e a cada contração puxa o barbante. Quanto mais intensa a contração, tanto maior o puxão.
Parece que, além de conscientizar o pai sobre o sofrimento da mãe ao parir, esse costume acarreta um “efeito colateral” de consequência social decisiva para cultura dos Huichol: tornou-se uma ferramenta eficiente no controle de natalidade. A expectativa de dor lancinante nas gônadas faz com que os maridos pensem duas vezes antes de engravidar suas mulheres, preferem a abstinência nos dias férteis delas depois de terem passado pela experiência da tortura escrotal uma ou duas vezes. Por conseguinte, os Huichol têm baixo índice de natalidade e, com isso, conseguem manter uma qualidade de vida mais elevada que seus conterrâneos que não utilizam o cordãozinho maldoso. A dor é duplamente amiga dos Huichol, de certo modo, muito mais do que para o resto da humanidade. JAIR, Floripa, 07/11/11.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Canibal



Nem a psiquiatria consegue explicar desvios comportamentais extremos como o canibalismo não motivado por fome letal. É um evento tão radical que foge das definições acadêmicas que a medicina da mente se socorre para enquadrar perversões.
Gustav Frank nasceu em 13 de agosto de 1890, fora dos limites urbanos da cidade de Palmeira, na pequena Vila Pinhões, hoje desaparecida depois que a estrada que liga Paranaguá a Assunção no Paraguai desapropriou suas terras. Oriundo de uma família de médias posses, proprietária de terras nas quais plantava milho, criava porcos e algumas vacas leiteiras, parece que teve uma infância bem comum, embora pelo que consta teve muitas dificuldades na escola e uma relação difícil com pai. Discussões ásperas sobre seu desempenho escolar fizeram com que ele, aos doze anos, fugisse de casa para trabalhar na construção de estradas. Há indícios que sua mãe havia falecido nesta época e ele viu-se desamparado porque tinha uma relação quase doentia de afeto a ela, enquanto ao seu pai nutria apenas temor e desprezo. Não há registro do que ele fez nos treze anos seguintes, mas, imagina-se que não tenha mantido relações com a família. Quando ele tinha 25 anos seu pai faleceu. Deixou a propriedade para seu irmão Karl, e uma quantia em dinheiro a Gustav a qual permitiu a ele comprar uma casa grande, antiga e decrépita em Palmeira.
Gustav alugou uma pequena loja, ao lado de sua nova casa, onde ele vendia alimentos e outros suprimentos para a população pobre do bairro. Com o passar dos anos ele se tornou querido e respeitado pelos quase cinco mil habitantes da cidade. Religioso ao extremo, tornou-se uma espécie de coringa da igreja batista local onde costumava manter o velho órgão em funcionamento adequado e auxiliar em todas as festas e eventos da congregação. Gostava de crianças e era igualmente gentil com conhecidos e estranhos. Aos cinquenta anos, tornou-se uma espécie de papai Noel de cabelos e barba ruivos, era querido de todos. Nunca enriqueceu e nem se tornou famoso, mas tinha bons amigos e, dizia-se, na sua mesa havia sempre comida suficiente para quem o visitasse. Era aparentemente o tipo de pessoa que todos gostariam de ter como vizinho. Podia ser considerado um cidadão acima de qualquer suspeita.
Depois que crises sucessivas fizeram com que fechasse seu pequeno negócio, Gustav passou a vender de porta em porta, cordões de sapato, suspensórios, cintos, sabão caseiro, agulhas de costura e outras miudezas. Uma vez por semana, em malas enormes, levava seu pequeno estoque às localidades de Pugas, Quero-quero, São Luis do Purunã, Porto amazonas e Irati, onde expunha os produtos nos mercados municipais ou em locais públicos de movimento. Logo acrescentou conserva de porco ao seu acervo de produtos. Parece que aos 52 anos, embora vivendo de biscates como se dizia, não morreria de fome, aliás, até engordara.
Mesmo na escassez dos mantimentos mais básicos decorrente da guerra que se desenvolvia na Europa, Gustav continuava a ser gentil e prestimoso como sempre. Aos andarilhos que passavam pedindo de porta em porta, ele fazia questão de dar abrigo e fornecer comida. Era uma espécie de guardião da caridade cristã. E suas conservas de carne de porco tinham uma aceitação elevada entre a população que pouca opção de alimentos dispunha.
Um sinal inquietante de que alguma coisa estava errada surgiu em setembro de 1942, quando um andarilho de apelido Garnizé, saiu correndo do casarão de Frank, sangrando muito com um ferimento na cabeça e gritando em desespero pela rua. Alertado pela gritaria, um vizinho saiu de casa para ver o que se passava. Na rua viu o pedinte coberto de sangue, falando rápido e desordenado que o velho ruivo tentara matá-lo com um machado. O vizinho, que se chamava Gabriel, incrédulo mas preocupado, levou-o à delegacia onde ele reiterou a acusação e foi levado ao hospital onde lhe fizeram um curativo e o baixaram para observação.
Embora descrente da afirmação do mendigo, o delegado pediu que Frank comparecesse ao distrito para confrontar a acusação de tentativa de assassinato. O velho, muito nervoso e falando de maneira atabalhoada, explicou que, como de hábito, havia oferecido hospedagem ao rapaz e que este tentara assaltá-lo e ele havia se defendido com o primeiro objeto que encontrou. Zeloso, o policial mesmo em dúvida sobre qual versão era verdadeira, deteve Frank sob custódia até que investigação mais apurada esclarecesse os fatos. Por volta das onze horas, o policial de plantão passou pela cela de Frank para ver se tudo estava bem. Para seu horror, encontrou o corpo sem vida de Frank balançando nas grades pendurado numa corda feita de lençóis rasgados.
No dia seguinte, os parentes de Frank foram avisados do suicídio e seu casarão foi interditado até que investigação total fosse efetuada. As acusações de Garnizé ainda estavam pendentes. O delegado com sua equipe, em seguida, foi ao casarão do suicida procurar qualquer evidência antes de liberar os pertences de Frank. Ainda que a entrada da casa se fizesse pela sala de visitas onde nada havia de anormal, também na copa, onde existia uma mesa de jantar com seis cadeiras, nada indicava qualquer ilicitude. Porém, ao entrar na cozinha os homens tropeçaram numa verdadeira loja de horrores, um labirinto asqueroso de imundícies acumuladas. Restos de ossos empilhados num canto, crânios em outro, pilhas de roupas e sapatos e prateleiras cheias de vidros de conserva “de porco” prontos para venda. No fogão uma panela grande com pedaços de carne aparentemente humana cozidos. Alguns órgãos humanos sobre a mesa, uns crus outros assados. As cadeiras da cozinha haviam sido revestidas de pele humana, o mesmo material havia sido usado para recobrir abajures e cestas de lixo. A tigela sobre a mesa, de aparência estranha, havia sido feita com o topo de um crânio humano. No quarto de dormir de Frank, as descobertas continuavam além da imaginação. Uma mesa escorada em três tíbias cruzadas a guisa de pés e caveiras sorrindo nas colunas da cabeceira da cama. Debaixo da cama encontrara restos mumificados de orelhas enfiadas num cordão como um colar macabro. Na parede havia uma coleção de máscaras faciais feitas com a pele dos rostos de nove vítimas.
Análises posteriores comprovaram que a carne “de porco” que era vendida por Gustav e tão aceita pela população, na verdade era humana. Parece que, durante anos, Gustav Frank, aquele bom cristão que todos gostavam, havia sido um canibal que vendia carne em conserva de suas vítimas, como se de suíno fosse, e se alimentava das vísceras daqueles sem teto que matava. Ao todo foram computados restos de 32 corpos dentro da casa e enterrados no jardim. Jamais se soube o que levou aquele homem à prática desses horrores. Às autoridades não convinha dar notoriedade àqueles funestos eventos, de modo que optou-se por ocultar da imprensa tudo que se relacionava ao caso. Não havia porque dar divulgação àquelas perversões, mesmo porque quase todo mundo na cidade havia comido carne humana. O que aqui está relatado foi extraído dos autos do inquérito que se instaurou na época.
Pois é, a vida real, por incrível que pareça, costuma ser mais surpreendente que a mais estranha ficção, Hannibal Lecter é apenas uma paródia bisonha do mais medonho canibal registrado na história deste país: Gustav Frank, o qual ficou conhecido como Jack Estripador de Palmeira. JAIR, Floripa, 03/11/11.

sábado, 5 de novembro de 2011

Lixo

Assunto recorrente em muitos textos de blogues que se preocupam com o meio ambiente, lixo não poderia deixar de aparecer em meus escritos. O fato é que já publiquei dois ou três registros de minha indignação para com o pouco caso que nós, os chamados civilizados, tratamos os dejetos que produzimos. Em primeiro, devemos ter em conta que a quantidade de lixo produzido aumenta na proporção que nos tornamos mais “civilizados”, isto é, uma existência mais “primitiva” - menos tecnológica - produz menos refugos que outra com grau maior de sofistificação. Mais “cultura” e civilização se traduzem num amontoado maior de sobras. É razoável inferir que o indígena ou silvícola quase nada de lixo produz que agrida o meio onde vive, seus restos são orgânicos e absorvíveis pela natureza, não há plástico numa tribo primitiva.
Em segundo lugar, devemos lembrar que o Planeta é um só e limitado no espaço que dispomos para ocupá-lo. Se nós formos acumulando as escórias e resíduos, fatalmente diminuímos o espaço disponível para vivermos. Seja pela ocupação física do lixo em lugares que poderíamos plantar e produzir alimentos, ou pelo envenenamento das águas, do solo e do ar. O problema é tão sério que não é apenas uma questão de construir lixões onde as dejeções humanas podem ser enterradas e, virtualmente, o problema pode ser empurrado com a barriga para as próximas gerações. É um problema de proporções tão gigantescas e consequências tão deletérias, que se não for tratado com prioridade máxima em nível mundial, a humanidade estará fadada a imergir nos próprios excrementos e de lá não sair mais, com todos os efeitos que esse mergulho coprófilo pode representar.
Dados oficiais do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF, sigla em inglês para Global Environmental Facility) nos dão conta que o cidadão médio produz em torno de 700 gramas de lixo doméstico por dia. Se multiplicarmos por sete bilhões de habitantes dá um resultado absurdo de 4.900 mil toneladas a cada 24 horas, isso sem contar os resíduos industriais e agropecuários. Aliás, o gado vacum é responsável pela emissão de milhões de toneladas de gás metano por ano, o que contribui sobremaneira para incrementar o efeito estufa, e os dejetos de porcos e galinhas poluem os cursos d’água em todo o Planeta.
Considerando que o aumento demográfico é uma realidade inescapável e que níveis maiores de prosperidade advenientes trarão aumento correspondente na produção de dejetos, há que se pensar urgentemente em alternativas que tornem viável a vida saudável de todos os seres deste mundo. Então, como não é enterrando o lixo em baixo do tapete – literal ou metaforicamente - que se resolve a equação lixo/vida, o GEF propõe o que muitos consideram a única opção ao alcance da humanidade antes que um ponto sem retorno seja alcançado.
O Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF) é um mecanismo financeiro internacional formado por 176 países que se dedica a apoiar iniciativas voltadas à preservação do meio ambiente e à promoção do desenvolvimento sustentável. Desenvolvimento sustentável é a expressão chave que deverá nortear todas as ações visando o futuro da civilização. Vejamos então o que é o conceito desse desenvolvimento: “O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais”. Me parece que, uso razoável dos recursos encerra tudo que devemos perseguir para tornarmos viável nossa perpetuação na face deste Planetinha azul.
No atual estágio de desenvolvimento onde existem poucos muito ricos e a grande massa é de despossuídos, é completamente irreal pensar um mundo futuro com todos ostentando o nível de consumo dos americanos ou dos europeus ricos, por exemplo. Também é uma ingenuidade imaginar que os atuais povos muito prósperos possam manter seus patamares de demanda de recursos sem comprometer a condição de vida humana como um todo. Então, deduz-se, só é possível resolver o impasse encontrando um ponto intermediário onde não existam milionários do desperdício nem miseráveis do consumo. E esse ponto de inflexão só será alcançado no dia que a humanidade perceber que se não tomar providência nesse sentido, o arcabouço cultural e as realizações da humanidade ruirão para sempre arrastados para o monturo de lixo que engolirá a civilização. JAIR, Floripa, 26/10/11.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Sobre leitura





Antonio Rogério Magri, para quem não lembra, era um dirigente sindical que foi convidado pelo presidente Fernando Collor de Melo para ser ministro do trabalho de seu lamentável e felizmente curto governo. Magri, além de ter sido ministro canhestro e totalmente ineficaz nas lides administrativas, alçou seu nome na imprensa pela inclusão no anedotário pátrio de expressões, neologismos e ideias “originais” que não lhe dignificam a inteligência que por certo lhe acode.
Num laivo de criatividade com resquícios de espírito sindical, o ministro cunhou o termo “imexível” ao se referir aos ganhos dos trabalhadores contemplados pela CLT; em outra ocasião, promoveu sua cachorrinha a “ser humano” como qualquer outro e criou expressões outras que lhe valeram mais destaque que sua atuação no Ministério do Trabalho. Mas, o que quero lembrar aqui é a sua infeliz colocação sobre livros e leitura: “Não leio livros, pois estes tendem a influir na opinião de quem lê, acho muito importante manter minha opinião sobre as coisas”. Essa frase lapidar, em minha opinião, é a defesa pura e simples da treva do obscurantismo, é a pedra tumular sobre tudo que o iluminismo trouxe para a cultura ocidental. Nada tenho contra o ex-ministro em questão, apenas, como leitor, me sinto ofendido e custo a acreditar que existe gente capaz de expressar tal estranheza sobre o ato de ler como fonte de conhecimento.
Para efeito de compreensão sobre a evolução cultural do Homo sapiens neste Planeta considera-se duas fases distintas as quais se convencionou chamar de pré-história e história propriamente. Sendo que a distinção entre o período histórico e seu precedente reside apenas no aparecimento da escrita. Não é segredo algum que a escrita fundamentou a civilização, sem ela a humanidade estaria vivendo em aldeamentos e aglomerações sem regras ou prescrições gravadas e sem registros que perpetuassem as descobertas e invenções que viabilizaram as sociedades modernas, ou seja, mesmo que houvesse criações que melhorassem nossa qualidade de vida, não haveria memória que as tornassem disponíveis para gerações vindouras. Sem a escrita seríamos um pouco mais que apenas trogloditas, não haveria perpetuação dos saberes adquiridos através das gerações que nos precederam. É razoável supor seríamos apenas um bando pré tecnológico de rogérios magris contemplativos, pouco vestidos, a perambular pelas campinas primitivas e vivendo em abrigos toscos de troncos cobertos de folhas.
Então, ainda que o registro literário exista há menos de dez mil anos, ele é o único elo que nos mantém coesos como civilização. A leitura inicialmente foi considerada como um simples meio de entender uma mensagem. Nos dias de hoje, porém, pesquisas neste campo definem o ato de ler, em si mesmo, como um processo mental de vários níveis, que contribui de modo extraordinário para o desenvolvimento do intelecto. Em outras palavras, quem lê desenvolve uma maior capacidade cognitiva. O processo de transformar símbolos gráficos em conceitos, ideias ou objetos exige grande atividade do cérebro; durante o processo de elaboração da leitura coloca-se em funcionamento um número incontável de neurônios. Lembrando que neurônios ativados significa maiores ligações entre eles e mais ligações, igual a capacidade cognitiva mais acentuada. Equivale dizer que a leitura representa para o cérebro o que o exercício físico representa para o corpo.
O processo de leitura consiste, basicamente, de quatro passos: visualização, na qual o leitor identifica as palavras e a relação entre elas; fonação, que é quando o leitor “fala” as palavras com o cérebro; na audição o leitor “ouve” as palavras proferidas com a mente e identifica o som que elas representam; e, finalmente, cerebração que é a transformação das palavras em mensagem, a qual terá maior ou menor clareza dependendo de os vocábulos serem menos ou mais conhecidos. Equivale dizer que se alguns termos não pertencerem ao vocabulário do leitor, este terá compreensão reduzida do texto. Mas, para nossa felicidade, quanto mais lemos mais nosso vocabulário se amplia, ou seja, fazendo analogia com o corpo: quanto mais se pratica exercícios, mais fácil se torna fazê-los. Assim, em que pese haver grande número de pessoas que “não têm tempo” para se dedicar a leitura porque está assistindo novela das oito, não há processo sucedâneo que possibilite eliminar a leitura de nossa vida com alguma vantagem cultural. Para desgraça do boquirroto ex-ministro. JAIR, Floripa, 28/10/11.