segunda-feira, 30 de abril de 2012

Florestas


Já tive oportunidade de me referir aqui à minha especial afeição pelas florestas. Seja o nome que for denominado o coletivo de árvores naturais: florestas, matas ou outros, me vejo sempre voltando ao tema. Talvez essa quase mania esteja ligada à minha infância, aos pinheirais e campos que cercavam a cidade de Palmeira onde nasci. Talvez seja também uma “lembrança” atávica relacionada às origens silvícolas de meu avô David, índio caingangue das margens do Iguaçu.
Bem, não importa, o fato é que florestas me parecem uma criação da natureza com claro intuito de reciclagem, ou seja, as matas naturais funcionam como complexos biológicos que devolvem oxigênio à atmosfera depois de absorverem o gás carbônico expelido pelos animais; e ainda arejam e fertilizam a terra com seus resíduos de folhas, galhos e troncos mortos. Isso sem contar que servem de abrigo e fornecem frutas, sementes e folhas como alimento aos animais. Árvores são pequenos laboratórios bioquímicos de extrema importância para os ciclos vitais dos seres do Planeta. Toda a fauna planetária está ligada direta ou indiretamente a flora, e essa é uma relação de mão dupla, os animais também contribuem para a saúde e sobrevivência das plantas na medida em que auxiliam na polimização, e alguns até protegem-nas contra predadores, embora esses predadores também sejam animais.
Daí que o Planeta, desde sua criação, foi desenvolvendo sistemas biológicos relacionados uns com os outros, formando um todo muito complexo que cria condições ideais para cada ser vivo que neles coabitam. Vale dizer, desde a mais ínfima bactéria até a baleia azul, maior mamífero do Planeta, passando pelas formas complexas dos demais vertebrados e dos organismos mais simples dos celenterados, todos estão relacionados. A vida vegetal, a vida animal e o reino mineral são partes do mesmo sistema Planetal. É um pouco forçado dizer que se uma borboleta bater as asas em Bangladesh poderá causar um furacão no Golfo do México, mas é inegável que há relações muito íntimas entre todos os seres, e as florestas funcionam como mediadoras entre muitos deles.
A floresta não é apenas um aglomerado de plantas, não é a reunião casual de árvores, arbustos e outros vegetais; é um sistema tanto complexo como desconhecido que a ciência só agora está prestando atenção. Só quando as florestas deixam de existir por terem sido dizimadas pelos homens é que se torna imperioso observar o quanto elas significam. O exemplo mais cabal e contundente do significado das florestas ficou patente quando se descobriu a história dos rapa nui, povo que viveu na ilha da Páscoa e que, um belo dia, se extinguiu para sempre. Sabe-se que, a despeito dos rapa nui terem construído estátuas de cabeças gigantes com chapéu, (moais) as quais adornam a ilha até hoje e servem como atrativo turístico para o mundo, eles não atentaram para a preservação de suas florestas e tornaram-se vítimas de sua incúria. Há registros fósseis e arqueológicos que o povo rapa nui, numa fúria insana de construir estátuas, cabanas, artefatos e embarcações, acabou com todas as árvores existentes na ilha e isso prenunciou o fim da civilização e da coesão social culminando com a extinção das tribos e das pessoas.
Assim se deram os eventos, segundo estudos recentes: Atestado por provas nas pedreiras lá existentes, sabe-se agora que os moais eram esculpidos aos pés do vulcão Rano Raraku – um dos três da ilha – e depois transportados a altares cerimoniais localizados à beira-mar, a dezenas de quilômetros de distância. Verificou-se que uma técnica bastante óbvia, mas de feito nefasto foi usada. Deitados, com as costas para baixo, os moais eram rolados sobre troncos de uma palmeira endêmica da ilha em um processo que poderia levar vários dias e consumir centenas de árvores. Graças ao furor religioso e à competição entre clãs, mais de mil estátuas foram esculpidas, o que levou à extinção, primeiro da palmeiras, depois das demais árvores. Esse fato aparentemente banal provocou uma reação em cadeia: sem as árvores, as aves migratórias, os mamíferos e até os répteis que se alimentavam dos frutos e que faziam parte da dieta dos ilhéus simplesmente sumiram. Pior, com o fim das florestas, fontes de matéria-prima para a construção de canoas, a pesca em águas ubérrimas, mas infestadas por tubarões também foi interrompida; construções de casas e confecção de artefatos e armas também se tornaram impossíveis. A morte da última árvore demarcou o ponto de inflexão a partir do qual a civilização rapa nui estava condenada à extinção.
Alguém pode fazer objeções quanto à conclusão que sem florestas um povo pode extinguir-se, lembrando que isso ocorreu num sistema fechado: uma ilha. Não é bem assim, ninguém pode afirmar que o fim da floresta amazônica, por exemplo, não trará consequências para os povos vizinhos da floresta de imediato, e em prazo mais logo para toda humanidade. Não devemos ser temerários a ponto de apostar num jogo desse porte, cujo resultado poderá ser extremamente desfavorável para os perdedores. Florestas evoluíram muito antes de o Homo sapiens dar as caras por aqui, de modo que quando surgimos, nos adaptamos a elas e não ao contrário. Desse fato se pode inferir que o desaparecimento da humanidade não acarretará qualquer ônus para as matas, já o contrário... Alguém tem dúvida que, se na ilha da Páscoa todos os humanos desaparecessem, as florestas nem notariam? Aliás, é lícito supor que elas passariam a estar mais saudáveis depois que o bípede predador se fosse. JAIR, Floripa, 20/04/12

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cerveja voadora


Detalhe da "carga".

Modelo XXX sendo abastecido de cerveja.

Spitfire devidamente "armado".

No solo.
Matéria copiada do blogue:
Durante a guerra, a cervejaria Heneger & Constable doou cerveja de graça para as tropas britânicas. Depois do dia “D”, o abastecimento das tropas de invasão na Normandia com suprimentos vitais já era um desafio e, claro, não havia espaço na cadeia logística para luxos como cerveja e outros tipos de bebidas. Alguns homens, muitas vezes chamados de "fontes", eram capazes de obter vinho e outras iguarias "da terra", ou melhor, com os habitantes locais. Pilotos de Spitfires da RAF surgiram com uma idéia bem criativa. O Spitfire Mk IX era uma versão avançada do Spitfire, com suportes para bombas ou tanques sob as asas. Descobriu-se que os suportes de bombas podiam ser adaptados para transportar barris de cerveja. De acordo com imagens que podem ser encontradas na internet, vários tamanhos de barris foram utilizados. É desconhecido se os barris poderiam ser alijados em caso de emergência. Uma vantagem era que se o Spitfire voasse alto o suficiente, o ar frio em altitude esfriaria a cerveja, tornando-a pronta para o consumo no momento da chegada.
Uma variação desse transporte semi clandestino foram tanques de combustível adicionais de longo alcance modificados para transportar cerveja em vez de gasolina. A modificação ainda recebeu a designação oficial modelo XXX. Mas, diante dessa novidade, a Receita Federal britânica interveio, notificando a cervejaria que eles estavam violando a lei de exportação por deixar de pagar os impostos correspondentes. Parece que o uso do modelo XXX foi encerrado em seguida, mas vários esquadrões encontraram maneiras diferentes para renovar seus estoques. Na maioria das vezes, isso foi feito com a aprovação oficial dos escalões mais elevados.
Em seu livro "Dancing in the Skies", Tony Jonsson, o piloto Islandês que voava na RAF, lembrou que o transporte da cerveja foi executado enquanto ele estava voando no Squadron 65. Toda semana um piloto era enviado da França de volta ao Reino Unido para encher os tanques alijáveis com cerveja e voltar para o esquadrão. Jonsson odiava cerveja, mas corria como qualquer outro homem do esquadrão para assistir a chegada da bebida. Qualquer piloto que fizesse um pouso duro e deixasse cair os tanques seria o homem mais odiado do esquadrão por uma semana inteira. Em seu livro "Pilot Typhoon", Desmond Scott recorda também que os tanques alijáveis do Typhoon eram cheios de cerveja, mas lamentou que a bebida assim transportada adquiria um gosto metálico.
Por outro lado, houve uso de técnicas menos imaginativas desenvolvidas pelos “escondedores” de garrafas, onde qualquer espaço encontrado na aeronave que pudesse conter um recipiente era usado, isso incluiu caixas de munições, bagageiros ou mesmo em partes ocas da asa, com resultados variados. Garrafas de champanhe, em particular, não reagiam bem às vibrações a que eram submetidas durante viagens desse tipo.
Agora a versão brasileira desse transporte criativo:
Logo depois da guerra, na década de cinquenta, foi criado na FAB um esquadrão de aeronaves B-17 em Recife, os tripulantes, quando viajavam para o exterior, tinham o hábito de trazer coisas como rádios, perfumes para as namoradas e esposas e pequenos aparelhos eletrônicos (proibidos de serem trazidos sem pagar os impostos devidos) dentro das asas das aeronaves. Há que lembrar que rádios portáteis eram novidade e, por isso mesmo, muito cobiçados por quem viajava ao exterior. A prática de trazer eletrônicos era bastante comum e era realizada principalmente pelos mecânicos e rádio operadores dos aviões.
Certa ocasião no início da década de sessenta, em seguida ao pouso de uma aeronave em Recife após uma viagem aos EUA, o comandante da Base foi receber os tripulantes na pista. Tripulação em forma sob a asa do B-17 saboreando a preleção de boas vindas do comandante, quando se ouviu uma música vinda de algum lugar próximo a ponta da asa. Ordenou-se a abertura de carenagens de acesso àquele local e constatou-se que havia um rádio portátil ligado “pegando” uma rádio local. Claro que o descuidado dono do aparelho não apareceu, mas os tripulantes levaram uma “chuveirada” em regra do comandante e o rádio passou a ser patrimônio da base desde então. Provavelmente o comprador havia ligado sem querer o aparelho antes de colocá-lo no esconderijo, e este ficou sintonizado numa frequência qualquer que coincidiu ser de uma transmissora brasileira, foi daí que resultou a lambança. Os tripulantes brasileiros podiam não ter conhecimento da prática dos pilotos da RAF, mas a ideia foi igual. JAIR, Floripa, 22/04/12.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Livros

Já deixei claro muitas vezes neste pedaço que gosto de livros e sou leitor apaixonado. Hoje quero, mais uma vez, fazer apologia da leitura e também lembrar que o livro é uma fórmula mágica de aprendizado, é um pacote compacto de saberes que alguém compilou e publicou. Fernando Sabino contava que ele e alguns amigos escritores, em uma reunião literária, fizeram as seguintes perguntas: O que vale a pena ser lido? Que livros devemos ler e quais não? Pois é, segundo ele, depois de muita discussão chegaram à conclusão que todos os livros devem ser lidos.
Concordo plenamente com eles, livros bons ou ruins o mais das vezes são como gostar ou não gostar de certas comidas, por exemplo. Há quem goste de comer gafanhotos no oriente, há quem deteste peixe ou não goste de jaca como eu. Então como determinar o que é bom e o que é ruim? Não existe fórmula para gosto por comida nem definição de quando um livro é bom ou ruim, todos merecem ser lidos, uns em algum momento de nossas vidas, outros em outro momento. Livros que achávamos ótimos quando éramos crianças, hoje podem parecer verdadeiros xaropes. Livros que alguns gostam outros acham maçantes, enfadonhos, chatos, e por aí vai.
Então como ficamos? Ficamos lendo, pois é a maneira mais fácil de aprender e é extremamente gratificante. Hoje é dia do livro, então leiamos! JAIR, Floripa, 23/04/12

domingo, 22 de abril de 2012

Os índios


Quando os portugueses desembarcaram em terras americanas no pedaço que acabou por se chamar Brasil, estima-se que existia em torno de seis milhões de aborígenes nestas paragens. Os silvícolas brasileiros estavam divididos em tribos, nominadas de acordo com o tronco lingüístico ao qual pertenciam: tupi-guaranis (região do litoral), macro-jê ou tapuias (região do Planalto Central), aruaques (Amazônia) e caraíbas (Amazônia). Claro que eles, os índios, não estavam nem aí para essa classificação, viviam de acordo com suas crenças, esperanças e necessidades, sendo a diferenciação idiomática um mero acidente cultural o qual os exploradores deram muita importância.
Hoje esses pioneiros habitantes da Terrae brasilis não passam de duzentos mil, o que demonstra um terrível genocídio perpetrado pelos que vieram depois. Sei que genocídio, cuja definição é extermínio de grupos humanos pela violência, pode parecer palavra muito forte para explicar o que aconteceu com a maioria daqueles que aqui viviam. Mas lembremos que no mesmo período em a população local diminuiu os que colonizaram o país multiplicaram por milhões sua população. Então, embora não tenha havido um extermínio abrupto e drástico, foi uma ação contínua e persistente que levou os silvícolas à quase extinção. Somos todos agentes, passivos ou não, de ações que determinaram a não sobrevivência cultural, em primeiro lugar, e física em segundo, de povo pacífico que, por direito, deveria estar vivendo em suas terras. Os europeus que aqui chegaram, agindo com truculência, falta de humanidade e ganância, não viam seres humanos naquelas pessoas simplórias seminuas que os receberam até com calor e amizade. Os portugueses encetaram ações cruéis contra um povo que culturalmente era “inferior” aos colonizadores. Os portugueses iniciaram um processo de extinção que perdura até hoje na nossa sociedade supostamente civilizada. Somos todos culpados.
Quem já andou pelas ruas de Manaus e cidades do interior da Amazônia, percebe que os nativos estão entre nós, houve forte miscigenação de colonizadores com as tribos locais. Os genes dos silvícolas fazem parte de nosso genoma. Eu mesmo tenho um avô Kaingangue e possíveis outros quatro ou cinco antepassados oriundos de aborígenes aqui do sul. A migração quase totalmente masculina dos primeiros portugueses que aportaram no Pindorama determinou os acasalamentos inter étnicos que resultaram nessa amálgama que quase todos os brasileiros somos agora. Menos mal, a cultura e a civilização nativa se foram, mas a herança genética ficou.
Imagino que num futuro distante, muito distante, quando a civilização, como a conhecemos, tiver chegado ao término – e esta é uma inferência a que podemos chegar simplesmente observando nosso comportamento atual - e novos valores tiverem que ser considerados, a vida natural em harmonia com tudo que nos cerca deverá se impor. O Homo sapiens “descobrirá” que a felicidade está ao seu lado, não nas grandes obras materiais; não no acúmulo de fortunas imensuráveis; não nas grandes conquistas territoriais; não nos grandes feitos da mente; não nas imensas viagens espaciais; não nas profundas explorações marítimas; não em alcançar uma longevidade duvidosa que onera mais que premia o existir com saúde; mas sim no ajuste perfeito e indolor do modus vivendi das sociedades com a natureza; com respeito e convivência pacífica com os animais, minerais e vegetais que partilham conosco este planetinha azul. Algo muito simples e bem acordo com o que os silvícolas já praticam há milhares de anos. E, quando isso acontecer, quando nossa civilização estiver evoluído até esse estágio, o homem terá alcançado a sabedoria suprema a qual tanto busca em suas indagações filosóficas e tanto define como expressão ideal de felicidade. A felicidade é aproveitar as coisas que a natureza nos dá de graça, é apreciar o belo e usufruir as alegrias e descobertas de coisas simples, quando o homem se der conta disso terá alcançado o éden na Terra. Amém.
Em que pese a mídia fazer questão de enfocar apenas a comemoração do aniversário de Roberto Carlos em 19 de Abril, hoje é dia do índio. JAIR, Floripa, 19/04/12. 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O rei

A princesa, o rei e a vítima.

Na Espanha, em decorrência da eleição de um parlamento socialista, em 1936 militares fascistas iniciaram um movimento para depor o governo, o que resultou numa cruenta guerra civil que terminou em 1939, com mais de um milhão de mortes, a queda do governo e assunção do general Franco como dirigente do país. Da guerra o que resultou de mais tétrico no imaginário mundial foi a destruição da cidade de Guernica. No dia 26 de abril de 1937, o povoado de seis mil habitantes foi bombardeado pelos aviões da Legião Condor da Luftwaffe alemã, em apoio às forças nacionalistas do general golpista Francisco Franco, nada sobrou, velhos, mulheres e crianças foram dizimados, os homens, na sua maioria, encontravam-se combatendo nas trincheiras. Desse massacre resultou talvez a obra mais emblemática de Picasso, Guernica, um painel pintado por ele, por ocasião da Exposição Internacional de Paris. Naquela fase histórica o fascismo havia assumido o poder na Itália com Mussolini em 1922, e na Alemanha, desde 1933, quem mandava era o nazismo de Hitler. Portanto, a Espanha e seus golpistas de plantão, se sentiam integrados a uma tendência européia daqueles tempos.
O ditador, chamado generalíssimo Franco, governou a Espanha com mão de ferro que não admitia oposição, seu mando absoluto e brutal, no qual fez uso do medieval e execrável garrote vil como instrumento para aplicação de pena de morte aos adversários, durou até 1975, ano em que a besta faleceu. Diante da vacância do poder e desestruturação social, do caos econômico e da mordaça política do país, em 1977 o primeiro ministro Adolfo Suarez convocou uma reunião com todos os líderes políticos, religiosos, sindicais e classistas com vistas a apaziguamento dos ânimos e encontro de um denominador comum que visasse o bem da pátria. Celebrou-se um acordo suprapartidário envolvendo todas as forças vivas do país. Esse acordo se chamou Pacto de Moncloa porque foi assinado no palácio com esse nome. O rei Juan Carlos foi entronado como uma espécie de mediador, cujo papel principal era amortecer os choques entre as facções antagônicas e servir de referência de estabilidade política. Esse monarca tampax que evitava sangramentos desnecessários funcionou bem, desde então a Espanha se tornou a oitava economia do Planeta.
Apesar dos graves problemas econômicos pelos quais passa o país nesta segunda década do milênio, a Espanha continua estável politicamente e não há qualquer vislumbre de golpes ou quarteladas no horizonte, situação e oposição convivem em harmonia na República. O rei continua decorando a República e esta continua pagando caro por esse adorno. Agora lemos a notícia que o rei Juan Carlos sofreu um acidente em Botsuana enquanto caçava elefantes, e que a viagem foi paga com dinheiro do contribuinte. Sei que alguns dirão que caçar elefantes em Botsuana é legal, mas lembremos nem tudo que é legal é moral ou justo e politicamente correto, pelo contrário, muitas leis contêm vícios redibitórios de nascença.
Então vejamos, o rei foi convocado num momento de virada sensível do país e já cumpriu seu papel. A Espanha curou-se das horrendas cicatrizes do franquismo e está saudável. O rei que é presidente honorário da World Wide Fund for Nature (WWF), "Fundo Mundial para a Natureza" gosta de caçar elefantes e está se lixando para a natureza. O mundo só ficou sabendo desse hobby real porque o rei sofreu um acidente (literalmente caiu do cavalo) enquanto praticava seu “esporte” predileto e agora se deu conta que os espanhóis estão mantendo um luxo perfeitamente dispensável. Também se sabe agora que o rei mantém uma namorada – uma princesa alemã - há muito tempo e que esta se encontrava caçando com ele por ocasião do acidente. E o que é pior, o mundo e a Espanha se deram conta que o rei é um objeto de decoração caro demais e sem qualquer serventia. Algo assim como ter na parede um Van Gogh falso que custou milhões.
Diante disso, quero dar meu não solicitado pitaco. Considerando que os espanhóis têm sangue quente e não costumam levar desaforo para casa: que esse rei démodé seja deposto e responda pelo delito de matar animais selvagens. Sugiro que sua pena seja de fazer faxina em jaulas de elefantes pelo resto de seus dias. Acredito que ao ver-se envolvido com os excrementos desses animais esse monarca rufião terá tempo de refletir sobre a merda que fez. JAIR, Floripa, 18/04/12.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Hércules C-130



Minha vida profissional/militar na qual labutei por trinta anos talvez tenha me proporcionado umas oportunidades só possíveis naquelas exatas circunstâncias pelas quais passei. Nos meus últimos dez anos na FAB trabalhei num complexo de oficinas militares no Galeão, Rio, destinado à manutenção de grandes aeronaves da Força Aérea. A segunda maior aeronave em tamanho, operada pela FAB, é o Lockheed C-130 Hércules, com toda certeza o avião mais versátil do mundo.
Em 1951, no início da guerra fria com a URSS, os EUA decidiram que teriam de substituir os já obsoletos C-47 (DC3 na versão civil) que haviam prestado excepcionais serviços às Forças Armadas durante a segunda guerra, mas que já não serviam para o que se avizinhava ser um embate entre duas potências mundiais que esperavam uma suplantar a outra em potencial de ameaças e exibição tecnológica. Era necessário modernizar a frota de transporte aéreo. Assim, a USAF mostrou uma demanda por aviões de assalto que pudessem decolar e aterrissar em pistas rudimentares, tivessem capacidade de carga elevada e pudessem ser facilmente convertidos para variados usos.
Então, em 1952 a USAF aceitou o projeto YC-130A da Lockheed e encomendou dois aparelhos. Em 23 de Agosto de 1954 um protótipo fez seu primeiro voo e dois anos depois, a 9 de Dezembro o C-130A entrou em serviço da USAF. Iniciava-se uma nova era no transporte militar e por que não dizer na logística de mais de setenta países que hoje operam o Hércules. A “família” C-130 detém o recorde de mais longo ciclo de produção de aviões militares em toda a história, já construídos, e voando pelo mundo todo, mais de duas mil aeronaves desse tipo, e há consenso entre os operadores para que continuem sendo produzidas e modernizadas que a demanda nunca diminuirá.
O extraordinário avião saiu bem melhor que a encomenda, sua versatilidade e adaptabilidade permitiram que muitas de versões fossem construídas, de forma que seu emprego evoluiu ao longo do tempo e dotou seus operadores de uma máquina jamais vista na história da aviação. Existem dezenas de versões do Hércules, sendo possível vê-los pousando sobre esquis na Antártida; transportando pára-quedistas em vários países; levando alimentos e medicamentos para áreas carentes da África ou locais atingidos por catástrofes; decolando em pistas curtas com auxílio de foguetes (08) afixados em suas laterais – a chamada decolagem JATO (Jet Auxiliary Take-Off); carregando tanques e outras viaturas em guerras e transportando até correspondência na Europa. Há também uma assustadora e demoníaca versão produzida durante a guerra do Vietnam, mas usada até hoje para atacar tropas inimigas, chamada Spectre. É o AC-130H, sendo que o “A” do prefixo quer dizer “Ataque”, que é a missão precípua dessa máquina mortal a qual é equipada com canhões e armas automáticas como a Gatling de seis canos, que fazem dela uma espécie de cavalaria aérea de altíssima letalidade. Já, a versão sobre esquis, permite que as bases científicas na Antártida funcionem. Essas aeronaves pousam em pistas de gelo daquele continente abastecendo o pessoal científico de víveres e todo o material necessário às suas pesquisas.
Pois é a respeito de uma dessas aeronaves que quero relatar um fato curioso. Em quatro de dezembro de 1971, um LC-130 (versão sobre esquis), numa decolagem curta usando os tais foguetes auxiliares, sofreu um grave problema técnico e pousou forçado no gelo adiante. Devido às condições adversas da pista a tripulação havia decidido que a decolagem ATO seria utilizada. Segundos depois que o avião desprendeu as rodas do chão, dois dos foguetes auxiliares se soltaram de seus pontos de fixação na fuselagem traseira esquerda, atingindo o motor número dois e destruindo sua hélice; fragmentos de metal voando danificaram motor número um. Embora o piloto tenha pousado com segurança na neve de quinze metros de espessura, o trem de pouso do nariz ficou danificado, mas a tripulação de dez homens nada sofreu. O avião pertencia a NSF, National Science Foundation, e esta julgou que seria muito caro e perigoso tentar retirar o avião daquele local que se situa a 1400 quilômetros da estação de McMurdo, maior base de pesquisa dos EUA.
Durante os anos seguintes, a aeronave foi gradualmente se enterrando na neve. Apenas a parte superior da cauda do avião ainda estava acima da neve dez anos depois, lembrando que o ápice da cauda se situa a quinze metros do solo. Mas, em janeiro de 1987, dezesseis anos depois do acidente, os especialistas determinaram que a reparação do Hércules danificado e abandonado era possível e o custo-benefício compensava, considerando o preço de uma aeronave nova. Em Janeiro de 1987, uma equipe de especialistas em reparos de campo montou seu acampamento próximo ao avião e imediatamente começou a trabalhar na aeronave. Durante os meses seguintes eles substituíram os quatro motores, dois sistemas de trem de pouso principal e do nariz, suportes e pequenos componentes. Deve-se registrar que o combustível e os demais fluidos como óleo hidráulico, estavam em condições normais de serem utilizados, não haviam perdido suas características físico químicas. Um ano depois, em 10 de janeiro de 1988, o avião foi completamente escavado e foi levado voando do local do acidente para a Estação McMurdo. De McMurdo o avião foi levado para uma oficina em Christchurch, Nova Zelândia, onde sofreu alguns reparos adicionais antes de ser reposto em serviço na Antártida. Haviam recuperado um avião que por todos os julgamentos possíveis deveria estar deteriorado a ponto de não mais ser utilizável. O C-130 havia mostrado ao mundo sua espantosa resistência às intempéries, ao tempo cronológico e aos danos. O prefixo dessa aeronave é JD 321 e ela continua esbanjando saúde e voando até hoje. JAIR, Floripa, 07/04/12.

domingo, 15 de abril de 2012

Marte



O planeta Marte é, de longe, o mais popular de nosso sistema solar. Talvez isso se deva ao fato de que ele é um dos mais próximos à Terra e que pode ser visualizado por aparelhos óticos de baixa potência. Por outro lado, sua popularidade também pode ser atribuída ao equívoco que resultou na crença infundada que na sua superfície existiam “canais”. Essa suposição começou com as observações do astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835-1910). Ao telescópio, ele observou uma série de supostas linhas finas que aparentemente uniam áreas escuras na superfície do planeta, como canais naturais que unem regiões alagadas. Schiaparelli as chamou de canali. Mas o termo foi traduzido para o inglês channel, que significa canal artificial. Na verdade o italiano queria referir-se a canais naturais como esses que são escavados pelas águas pluviais.
Incorporada ao imaginário ocidental essa interpretação errônea, criou-se a ilusão que em Marte poderia haver vida inteligente com todas as possíveis consequências que tal fato acarretaria. Marte transformou-se no planeta por excelência para abrigar seres verdes hostis providos de antenas, dispostos a pousar na Terra com suas naves de tecnologia avançada e transformar os terráqueos em escravos ou eliminá-los. Embalados pela aceitação quase passiva de existência desses “homenzinhos verdes”, vários escritores imaginativos criaram estórias de ficção nas quais éramos visitados por marcianos. Um desses escritores foi o inglês H. G. Wells, que em 1898, lançou “Guerra dos mundos”, livro que se tornou um clássico, gerou inúmeras imitações e serviu de inspiração a mestres como Orson Welles e Steven Spielberg.
Numa tranqüila noite de 1938, dia das bruxas (31 de outubro), um dos mais sensacionais programas de rádio já criados, em que o diretor Orson Welles simulou a invasão da Terra por conquistadores marcianos. Em pouco tempo, vários boletins fictícios - inseridos como notícia de última hora na programação normal - convenceram cerca de seis milhões de ouvintes, em todo o país, que as explosões ouvidas como ruído de fundo eram dos motores de foguetes partindo para a guerra de conquista. Estima-se que milhões de pessoas ficaram seriamente assustadas e muitos milhares entraram em completo pânico, gritando nas ruas, rezando ou procurando vedar as casas contra os gases das armas invasoras. Um marco na arte do suspense, o programa de Welles não fez mais que explorar a grande expectativa que as pessoas alimentam de encontrar vida em outros mundos, principalmente em Marte.
Com o avançar de novas descobertas a respeito de como a vida se sustenta no planeta Terra, a suposição que haveria vida inteligente em Marte arrefeceu, mas continuou existindo uma fímbria de esperança que um dia o homem pisaria naquele planeta de descobriria em definitivo a existência ou não de vida marciana. Quando os russos lançaram o Sputnik em 1957, e, em plena guerra fria, pegaram os americanos de calças curtas e fizeram com que estes acordassem para a “corrida espacial” a qual culminou com várias visitas à Lua e promessa de chegada do homem em Marte nos anos oitenta. Ficou só nas promessas, as explorações espaciais são muito caras e tornam viável apenas lançamentos de naves não tripuladas a outros planetas.
Do ponto de vista dos pesquisadores humanos, Marte continua sendo o mais interessante e promissor com respeito à possível existência de vida, ainda que microscópica. Sua atmosfera é suficientemente densa para lhe conferir um clima. Tal qual a Terra, Marte possui calotas polares que aumentam e diminuem de acordo com as estações. Essas características sugerem que Marte poderia ser habitado por seres, animais ou vegetais, nos moldes como os conhecemos no nosso planeta.
Contudo, além dessas especulações o mais das vezes ociosas, observações feitas no final dos anos 90 pela Mars Global Surveyor confirmaram a suspeita de que Marte, ao contrário da Terra, não possui um campo magnético digno de nota, aumentando potencialmente ameaça a qualquer tipo de vida pela exposição à radiação cósmica que pode alcançar a superfície do planeta em doses maciças. Cientistas também especulam a possibilidade de que a falta de proteção devido ao diminuto campo magnético ajudou o vento solar dissipar grande parte da atmosfera de Marte no curso de bilhões de anos.
Trocentas outras missões não tripuladas foram enviadas ao Planeta Vermelho com intuito não só de estudar sua atmosfera e constituição do solo, como também possíveis resquícios orgânicos de vida que teria existido em Marte em época distante quando suas condições, supõe-se, eram mais favoráveis à vida. Em fevereiro de 2005 foi anunciada a descoberta, pela Mars Express, de evidências de um baita mar congelado logo abaixo da superfície do planeta, ligeiramente ao norte do equador, com uma extensão assustadora de novecentos quilômetros. A importância da descoberta é que esta é a primeira evidência da existência de água longe dos pólos do planeta. Outra descoberta de monta é de uma superfície circular de gelo, de 35 quilômetros de comprimento e 2 quilômetros de profundidade, localizada no fundo de uma cratera, numa grande planície próxima ao pólo norte do planeta. Estas são as notícias mais importantes de todos os tempos com relação à existência de condições que permitiriam a eclosão de vida em Marte. No mais tudo é especulação ainda.
Pois é, o planeta vermelho, em oposição ao nosso vilipendiado planetinha azul, está próximo o suficiente para ser assediado por nossas sondas e longe demais para ser xeretado por nossos astronautas. Ainda mais, embora nessa matéria ainda caibam sonhos como “colônias marcianas” a serem habitadas por gerações de intrépidos pioneiros humanos, nosso nível tecnológico atual ainda não consegue resolver os maiúsculos problemas que surgiriam numa empreitada dessa natureza. Por enquanto, poetas e outros sonhadores podem continuar entoando a música “Marcianita” gravada por Sérgio Murilo nos anos setenta:
Esperada, marcianita,
Asseguram os homens de ciência
Que em dez anos mais, tu e eu
Estaremos bem juntinhos,
E nos cantos escuros do céu falaremos de amor...”

Dez anos, porque o otimismo daquele tempo supunha que em uma década estaríamos pisando no solo avermelhado daquele planeta. Sonhos! JAIR. Floripa, 20/03/12.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Inquisição ibérica

A inquisição católica medieval que teve início em 1184 no Languedoc (sul da França) para combater a heresia dos cátaros ou albigenses, teve sua sequência mais perversa e duradoura na Península Ibérica. Em 1249 foi implantada no reino de Aragão, como a primeira Inquisição estatal e, já na Idade Moderna, com a união de Aragão e Castela, transformou-se na Inquisição espanhola (1478 - 1834), sob controle direto da monarquia hispânica, estendendo posteriormente sua atuação à América e todas as colônias espanholas e portuguesas espalhadas pelos diversos continentes. A Inquisição portuguesa foi criada em 1536 e permaneceu até 1821.
Há que se notar que na ausência de “bruxas” nas nações ibéricas, os alvos primordiais das inquisições teriam sido inicialmente os conversos ou cristãos novos, como eram chamados os judeus convertidos ao cristianismo espontaneamente ou por decretos reais. Na visão dos inquisidores os conversos eram todos criptojudeus, isto é, católicos na aparência, mas judeus no íntimo. Embora em muitos casos a conversão tenha sido sincera e espontânea, para a inquisição todos os conversos eram pecadores que deviam expiar suas culpas através da fogueira.
Aos cristãos novos, vivendo há centenas de anos na Península Ibérica, era extremamente difícil entender a perseguição de que eram alvo e mais difícil ainda se defender quando eram acusados de judaizantes. Alguns, muito poucos na verdade, conseguiam desvincular-se de suas raízes ibéricas e migravam para regiões mais tolerantes com a diversidade, Países Baixos, norte da África e até o Brasil eram metas desses cristãos que não eram aceitos no país que os viu nascer.
Na Espanha, a partir de 1474, quando Isabel I de Castela, jutamente com Fernando II de Arãgão, assumiu o trono, as coisas se tornaram piores para os conversos, principalmente porque os que detinham riquezas eram alvos primários dos reis que viam na inquisição um instrumento útil para encher as burras públicas com o dinheiro confiscado. As perseguições eram atrozes e, uma vez que o indivíduo era acusado, a primeira providência era confiscar todos seus bens. Se muito depois – lembrando que os processos inquisicionais eram extremamente longos – se provasse que a acusação era infundada e o acusado inocente, seus bens jamais regressavam novamente. A inquisição tinha um caráter eminentemente venal, mas disfarçada de pregação moral, os inquisidores geralmente se tornavam muito ricos.
Pois bem, perseguidos e sugados de suas riquezas os cristãos novos, em 1492 os que restavam foram expulsos da Espanha, sendo que não tinham direito de levar quaisquer bens, mostrando claramente de onde os nazistas tiraram suas “leis de Nuremberg” que permitiam que judeus saíssem da Alemanha com uma mão na frente outra atrás. Muitos morriam de fome. Parece que Portugal sentiu-se na obrigação de seguir o mesmo caminho, então, em Dezembro de 1496, Dom Manuel assinou o decreto de expulsão dos hereges, concedendo-lhes prazo até 31 de Outubro de 1497 para arrumar suas trouxas e cair fora. Foi outra debandada que desenraizou milhares de famílias e trouxe como consequência um esvaziamento da intelectualidade e de artesãos na Ibéria, posto que judeus e conversos se dedicavam ao mister das artes manuais na sua maioria. Sapateiros, oleiros, peleteiros, pedreiros, marceneiros, carpinteiros e também advogados e médicos passaram a fazer falta na região depois desses decretos expulsórios.
E agora José? Agora que já não temos hereges judaizantes na região, que fazer? Muda-se o alvo ora! Lembremos que a Península estava ocupada parcialmente há quase novecentos anos por povos oriundos do norte da África, árabes ou, como queriam os ibéricos, mouros. Pois a inquisição imediatamente apontou seu colimador para essa potencial fonte de riquezas, passou a ver iniquidades e heresia em todos os seus atos, era uma nova temporada de caça às bruxas que se abria, sem que necessariamente existissem bruxas a serem caçadas.
Vejamos a que ponto chegava a paranóia da inquisição. Embora psicologicamente a sociedade ibérica que apoiava a inquisição o fazia pelo orgulho de se sentir cada vez mais limpa, na prática o oposto é que ocorria: para ser reconhecido como bom católico era importante feder. Explico. Os povos árabes muçulmanos tinham (ainda têm) o hábito de fazer abluções antes das orações. Significa que antes de cada prostração para orar ao profeta eles lavam as mãos e o rosto. Para os ibéricos se tornou prova de infidelidade cristã, acreditem, lavar-se. Os mouros eram denunciados por se lavarem o que era considerado suspeito por causa das abluções rituais prescritas pelo islã. As abluções e a simples limpeza corporal se confundiram e quem apresentasse cheiro de limpeza, de um corpo higiênico, era denunciado aos inquisidores. O fedor dos ibéricos “genuínos” passou a ser um atestado de pureza religiosa. Durma-se com um barulho desses!
Bem, depois que os mouros foram expulsos, os alvos da inquisição mudaram mais uma vez. Perseguiam-se agora os protestantes e quaisquer dissidências católicas, reais ou imaginárias, por menores e mais insignificantes que fossem. A inquisição ibérica havia se tornado uma máquina autônoma que se alimentava de cadáveres e riquezas dos cidadãos espanhóis e portugueses que apresentassem qualquer dessemelhança com o protótipo do cristão velho, o primevo criador da máquina. A monstruosa criatura continuou engolindo almas e corpos de modo que passou a ficar escasso o material para deglutição.
Mas, logo que a França inaugurou o iluminismo decorrente da revolução em 1789, a perseguição inquisitorial se voltou para os pregadores da igualdade, fraternidade e irmandade. A partir de então, a erudição e a leitura passaram a ser encaradas com extrema cautela. A inquisição se deparou com novo oponente que, especialmente depois da revolução francesa, passou a ser sua principal fonte de preocupação: o livro. Livros impressos na França eram sumariamente incinerados em praças públicas de Madri sem ao menos terem sido lidos pelos censores da inquisição. A origem desses escritos já era prova suficiente de sua perniciosidade. Na verdade é ocioso lembrar o que disse Heinrich Heine quase um século depois: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas”, porquanto os ibéricos já estavam queimando pessoas, sendo que queimar livros era apenas um apêndice de suas paranóias inquisitoriais.
Como resultado desse obscurantismo que assolou a Península Ibérica até o início do século dezenove, depois de 1834 a Espanha e Portugal emergiram como os países mais atrasados tecnológica, cultural e em humanidades da Europa. O reflexo dessa incúria se faz sentir até hoje em pleno século vinte e um. JAIR, Floripa, 09/04/12.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Lambança aviatória

Corrigan e seu Curtiss-Robin 29.



No início do século vinte, com o surgimento do avião apareceram os primeiros aviadores intrépidos que faziam da aviação um esporte praticado para deleite de um público ainda muito espantado com o “mais pesado que ar”. Era a época da chamada aviação romântica. Nos EUA, e também na França, surgiram os tais “Circos voadores” os quais davam espetáculos aéreos para um público pagante. Aviadores e seus acompanhantes realizavam acrobacias ousadas, voavam de dorso, passavam através de celeiros de portas abertas, cruzavam por de baixo de pontes, faziam rasantes sobre o público; acrobatas penduravam-se em cordas em pleno voo, outros ficavam sobre as asas durante acrobacias radicais e toda uma série de ações que tiravam o fôlego dos espectadores.
Voos de longas distâncias eram disputados por aviadores em busca de prêmios e fama; aviões experimentais eram construídos e sofriam acidentes na mesma proporção, e a aviação ia se desenvolvendo graças à audácia desses pioneiros. Pois foi nos EUA, querendo conquistar o reconhecimento de aviador emérito que acabou surgindo a fama de Douglas Corrigan.
Corrigan nasceu em Galveston, Texas, em 22 de janeiro de 1907. Seu pai era engenheiro civil e sua mãe professora. Eventualmente, os pais se divorciaram e Douglas saltou de um pai para outro antes de se estabelecer em Los Angeles com a mãe. Lá, ele começou a trabalhar na indústria da construção. Na época, a aviação não parecia estar em seu futuro.
Então, numa tarde de domingo em outubro de 1925, Douglas decidiu visitar um campo de pouso local. Corrigan viu um piloto levar passageiro para passeios em um "Curtiss Jenny” biplano. Excitado com a possibilidade de fazer seu próprio passeio, voltou no domingo seguinte com U$ 2,50 na mão e convenceu o piloto a levá-lo para o ar. Voando sobre Los Angeles naquela tarde, Corrigan teve uma revelação: estava determinado a aprender a voar. No domingo seguinte, ele retornou para a sua primeira lição de vôo e continuou por semanas. Corrigan também passou um tempo aprendendo tudo que podia de mecânica de aeronaves, considerando que naquela época saber mecânica era fundamental para fazer as aeronaves saírem solo, Corrigan estava certo. Em 25 de março de 1926, ele fez seu primeiro vôo solo.
Casualmente, Corrigan teve aulas de voo no aeródromo onde BP Mahoney e TC Ryan, fabricantes conhecidos de aeronaves, os quais estavam operando uma pequena companhia aérea. Não demorou muito para que Corrigan começasse um trabalho com os dois homens e foi trabalhar em sua fábrica de San Diego. Contudo, pouco depois que Corrigan começou a trabalhar para Mahoney e Ryan, um novo cliente se aproximou deles para saber sobre como fazer um avião especial. Charles Lindbergh queria projetar e construir o Spirit of St. Louis. Corrigan, montado asa da aeronave, instalou os tanques adicionais de gasolina e o painel de instrumentos.
Uma meia dúzia de pilotos famosos, entre eles Amelia Earhart e Wylie Post, já havia atravessado o Atlântico desde que Lindbergh abrira caminho com o Spirit of St. Louis em 1927. Corrigan estava determinado a realizar um feito que ombreasse com esses heróis americanos. Comprou um bem maltratado Curtiss-Robin 1929 em Nova Iorque em 1933, por 310 dólares, e na volta para a Califórnia, pousava de fazenda em fazenda oferecendo passeios em troca de grana. Nos dois anos seguintes passou a modificar o avião tendo em vista a meta que se propunha, inclusive trocou o motor Curtiss OX5 de noventa HPs por outro 165 HPs montado a partir de dois Writh antigos, ou seja, estava transformando um avião velho e decrépito numa traquitana estranha e perigosa. Também instalou quatro tanques extras, dois dos quais à frente da cabine de modo que lhe obstruíam a visão. Coisa de maluco. Em 1936 Corrigan realizou vários voos de ensaio para alcançar a melhor regulagem entre aceleração e consumo, a fim de obter o máximo desempenho. Pelo menos tinha grande habilidade mecânica e a usava para melhorar a performance da geringonça esquisita.
Ele havia comentado abertamente com amigos a ideia de realizar uma travessia não autorizada, até porque sua máquina era apelidada de lata velha aérea e as autoridades lhe deram apenas certificado de aeronave experimental. Então, voou até Nova Iorque em 10 de julho de 1938, estabelecendo um recorde de 27 horas e cinquenta minutos para percurso de 4300 quilômetros. Quando decolou na semana seguinte levando apenas algumas barras de chocolate, duas caixas de biscoitos baratos e uma garrafa de água, era impensável que viesse a realizar o voo que o deixou famoso pelo resto da vida.
A partir de um voo não autorizado tornou-se um aviador lendário, não por causa de suas realizações como piloto, mas sim por causa de uma suposta lambança aviatória. Em 1938, conquistou o imaginário de um público cansado da depressão ao sair do Blooklyn num vôo solo sem escalas para Los Angeles e no dia seguinte pousar sua aeronave tipo “feita em casa” em Dublin na Irlanda, aparentemente porque ele interpretou mal sua bússola. Para os americanos, que foram apanhados no meio da Grande Depressão, Corrigan forneceu um motivo para bom humor e soerguimento e ele se tornou um herói popular nacional. Por este dia foi apelidado Douglas “Wrong Way" Corrigan, e essa continua a ser uma expressão tornada coloquial na cultura popular. As pessoas a usam para descrever qualquer um que contraria a lógica e vai pelo caminho errado, especialmente em eventos esportivos.
As pessoas presentes no Campo Floyd Bennett quando ele decolou, às 15:15 horas de 17 de julho de 1938, ficaram intrigadas quando Corrigan inclinou a aeronave e fez uma curva para o leste quando todos sabiam que Los Angeles fica a oeste. Quando o mundo soube que seu monstrengo todo remendado e com excesso de peso havia pousado no aeroporto de Baldonnel em Dublin na Irlanda, 28 horas e trinta minutos depois, Corrigan já voara direto para o coração do povo americano. Teve direito até a desfile em carro aberto nas ruas de Nova Iorque.
Registrou-se que, com a cara mais cínica, ele teria dito aos embasbacados irlandeses: “Sou Douglas Corrigan e vim direto de Nova Iorque, onde estou?”. Continuou a sustentar, com um riso disfarçado, que fora vítima de uma bússola defeituosa. Quando as autoridades questionaram Corrigan sobre o incidente, ele jurou de mãos postas que havia deixado Nova York em rota para a Califórnia, mas depois perdeu-se nas nuvens e voou para o lado errado por causa da bússola em pane. Complacentes, as autoridades suspenderam sua licença por pouco tempo. Corrigan foi piloto de testes durante a Segunda Guerra e depois montou um serviço de carga aérea. Em 1988, foi convencido a voltar aos holofotes após convite para exibir seu avião que se encontrava desmontado numa garagem. As autoridades policiais acharam prudente amarrar a cauda da aeronave em uma viatura para evitar que ele decolasse.
Douglas Corrigan morreu em 09 de dezembro de 1995. JAIR, Floripa, 24/02/12.

sábado, 7 de abril de 2012

O Baobá

A primeira vez que topei com a palavra baobá, lembro, foi quando muito jovem li o “Pequeno Príncipe” de Saint Exupéry. Despertada a curiosidade consultei uma enciclopédia e descobri que se trata de uma árvore de aparência bem exótica para não dizer inusitada, nativa da África.
Acho que “bem exótica” é eufemismo frente imagem dessa portentosa planta que pode alcançar altura de 5 a 30 metros e diâmetro do tronco de 7 a 20 metros, sendo que a relação entre espessura do tronco e altura da copa pode ser 15 por 10, por exemplo. Ou seja, a árvore pode ter o diâmetro do tronco maior que a altura da copa! Coisa de louco.
O nome científico do vegetal é Adansonia digitata em homenagem ao naturalista francês Michel Adanson que o descreveu pela primeira vez. O baobá é um gênero de oito espécies de árvores, seis nativas de Madagascar, uma nativa do continente Africano e da Península Arábica e uma da Austrália, do estado de Queensland, onde é conhecida por bottle tree, a qual tive oportunidade de fotografar quando lá estive. A espécie do continente Africano também ocorre em Madagascar, mas foi transplantada para aquela ilha.
Os botânicos do século dezenove ao “descobrirem” os baobás se valiam de datas gravadas em seus troncos para estimar suas idades. Há registros que os primeiros exploradores europeus no século quinze – portugueses por certo – gravavam as datas de suas primeiras visitas nos troncos das árvores, de modo que os estudiosos da flora nos séculos seguintes estimavam a idade delas por aquelas datas, coisa de uma imprecisão energúmena digna de curiosos dos primeiros tempos da ciência. Depois que se desenvolveu a técnica de análise de datas pelo decaimento do carbono quatorze, que permite saber a idade de seres orgânicos, os botânicos ficaram surpresos com a idade que o baobá poderia alcançar, alguns espécimes de Madagascar, constatou-se, teriam entre oito e dez mil anos de existência, idades próximas as de sequóias gigantes do Canadá e de cedros do Líbano, árvores que podem ter até dez milênios. Façamos uma comparação: quando Jesus viveu sobre a Terra, essas enormes árvores já eram adultas há muitos milhares de anos.
Outra curiosidade, assim como outras grandes árvores como as castanheiras da Amazônia e as sequóias gigantes, os baobás funcionam como mini universos biológicos. Suas raízes, tronco, galhos, folhas e flores constituem um sistema complexo que abriga uma enorme variedade de seres que vivem e se alimentam por ali, alguns jamais deixando suas imediações por toda vida. Desde fungos e bactérias nas raízes até primatas nos galhos, passando por insetos, aves e répteis nos buracos dos troncos, galhos e folhas, a fauna que se abriga e faz do baobá sua fonte de alimento, chega a ordem de milhares. Considerando que a árvore pode viver muitos milênios, dá para imaginar milhares de ciclos vitais se desenvolvendo a custa e ao abrigo dela. É uma arvore que não solta raízes para os lados, e sim uma só raiz bem profunda que vai em busca de água.
Certa ocasião,vi um programa no canal Discovery que acompanhava a vida diária e as tentativas de reprodução de um casal de calaus, ave africana que tem aparato alar perfeito, mas que prefere andar pelo chão aos invés de voar, só alçando voo em emergências ou para acessar o ninho no alto. Esse casal nidificara em um buraco no tronco de um baobá imenso e aparentemente milenar. Ainda que o foco do ornitólogo cinegrafista fosse os calaus, a intrincada e buliçosa vida em torno deles não podia deixar de ser levada em conta, tendo em vista as interações de todo o sistema biológico a volta das aves. Dezenas de colônias de formigas patrulham o “território” de galhos e folhas em busca de possíveis parasitos que podem faze mal à árvore, em troca recebem néctar das flores, abrigo em fendas e buracos e seiva doce que exuda de algumas áreas do tronco; aves comem insetos e atraem répteis que comem seus ovos e filhotes; os répteis, como pequenos lagartos, vivem nos galhos e servem alimento aos calaus e macacos que também comem os frutos; frutos caem no rio abaixo e servem de comida para peixes que acabam transportando as sementes para outros lugares onde estas germinam e perpetuam o plantel de baobás em outras áreas.



Pela pesquisa que fiz na web, no Brasil existem bem poucos exemplares dessa planta. São conhecidas em torno de vinte e uma árvores no país. Em Pernambuco existe a maioria delas, dezesseis, três no Rio Grande do Norte, uma no Ceará e uma no jardim botânico do Rio de Janeiro. Mas, por que estou falando dessa árvore que, afinal, é oriunda de terras distantes e pouco se vê por aqui? Porque, justamente, vou plantar algumas em Floripa. Acontece que fizeram um aterro, tipo aterro do Flamengo, mas de tamanho bem menor, justamente aqui “debaixo de minha janela” por assim dizer e estão na fase de ajardinamento com plantio de grama e árvores. Consultei gente da prefeitura sobre a possibilidade de plantar uma árvore e me disseram não haver problema desde que ela fique alinhada com as demais. Como não lhes disse que tipo de árvore a qual pretendo plantar, colocarei algumas mudas de baobá bem em frente ao prédio que moro, pois comprei dez sementes através do Ebay para esse fim. Plantei as sementes em vasos e algumas já eclodiram e formaram mudas, depois as transplanto para este aterro chamado beira-mar continental.
Como sonhar é válido e barato, me dou ao luxo de imaginar que daqui a dois ou três mil anos, algum curioso passante por estas plagas verá a majestosa e instigante árvore e ficará imaginando quem a teria plantado, ou como ela teria vindo parar aqui na terra dos menézinhos. JAIR, Floripa, 20/02/12
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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Sandices humanas





Se observarmos a natureza – e não precisa nem ser através de olhares científicos – uma coisa que salta aos olhos é a diversidade de formas dos corpos dos animais (óbvio demais) e a relação da forma com a classificação do animal dentro do reino. Assim, mamíferos quase sempre têm quatro membros, insetos sempre têm seis membros, aves sempre têm duas pernas, por exemplo. Claro, não só o número de membros relaciona-se com o animal do qual falamos, outras características anatômicas também são notáveis: mamíferos não têm asas exceto os morcegos; peixes não têm sangue quente exceto os atuns, e por aí vai.
Dentre os mamíferos, aquele que mais nos chama atenção e que mais nos preocupa é o Homo sapiens, por razões mais que naturais. Esse complexo bicho – não mais complexo que o rato ou o ornitorrinco – é classificado segundo Lineu como: Domínio - Eucarionte - Os eucariotas são os organismos vivos unicelulares ou pluricelulares constituídos por células dotadas de núcleo, distinguindo-se dos procariotas, cujas células são desprovidas de um núcleo bem diferenciado; Reino – Animal – Também chamado Animália, o reino animal é composto por seres vivos pluricelulares, heterotróficos, cujas células formam tecidos biológicos, com capacidade de responder ao ambiente que os envolve ou, por outras palavras, pelos animais; Filo – Cordato; Classe – Mamífero; Ordem – primata; Família – Homideo; Gênero – Homo; Espécie – Homo sapiens. Havendo quem ainda classifique o bípede falante como uma subespécie, sapiens sapiens, o que não é muito sapiens por parte de quem assim pensa, pois para existir um duplo sapiens deveria existir um sapiens simples diferente de nós, o que não acontece. Somos os únicos sapiens que se conhece.
Pois bem, aqui está esse primo chegado de primatas arbóreos como o chimpanzé, o orangotango e o gorila, todo refestelado andando sobre duas pernas e tendo os membros superiores livres para praticar suas artes. E, justamente, essas artes as quais pratica é o que o diferenciam de seus parentes peludos, pois se olharmos nossa constituição genética temos menos de meio por cento de diferença com os chimpanzés. Não somos tão especiais assim, tivemos apenas a sorte de sermos providos com mãos hábeis ao invés de pernas anteriores, e isso nos tornou arrogantes e metidos.
Mas, o que realmente nos torna especiais, é pensar que somos especiais, é fácil imaginar que se moscas se acham especiais lá naquele cérebro tão diminuto quanto desconhecido pelo homem, elas são especiais ao modo delas. Quem pode contestar isso? As moscas – ou a lesmas, ou as bactérias – têm tanto direito de nos julgar quanto nós o temos de julgá-las. Será que as formigas não riem de nós – riso de formiga, é claro – achando que somos tronchos, vagos e bestunsófilos sísmicos? Lembrando que bestunsófilo é termo formigal que tem significado claro para elas, mas é completamente intraduzível para qualquer idioma humano. Já, sísmico, é isso que entendemos mesmo: causador de abalos. É só lembramos que quando pisamos num formigueiro deve haver abalo bem significativo na escala Endopterigota delas. Inferindo ainda que essa escala usada pelas formigas pode medir magnitudes de 01 a 100.000 endos, sendo o menor índice, 01 o abalo causado por uma pisada de besouro e 100.000 a pisada de um elefante, ficando a pisada do homem entre os cinco e dez mil endos.
Então vaga o bicho homem, arrogante, pelos espaços disponíveis do Planeta, “se achando”. Julgando-se o ápice da criação, criando em sua mente privilegiada até um Ente Supremo que a tudo criou e tudo controla e que, na sua sabedoria primordial, trouxe á luz um ser a Sua imagem e semelhança. Da para acreditar em tamanha presunção?
Pois é, esse ser “especial” criado a semelhança do Criador, pensa que é melhor que a formiga a qual esmaga sem piedade com seus pés maldosos. Esse ser que é um animal como qualquer outro e não é especial no sentido de ter privilégios. A marcha da natureza, - isso os cientistas já provaram – faz com que de tempos em tempos sejam eliminados da face da Terra, seres incompetentes ou que não se adequaram com perfeição a novos ambientes ou novos climas. Comprovadamente a natureza já se livrou sete vezes dos menos adaptados. Se o Homo sapiens for realmente sapiens e tiver um cagagésimo de humildade lhe será fácil verificar que está em rota de colisão direta com sua própria extinção. Se a arrogância do homem não lhe tolher a capacidade de julgamento e não turvar sua visão, ele será capaz de enxergar um futuro próximo do Planeta, onde ainda existirão milhares de espécies animais em pleno gozo de suas existências profícuas, sem qualquer ser humano até onde a vista puder alcançar. Poderá ver algo como o paraíso na Terra, onde animais e vegetais interagem e uns servem de alimento aos outros em troca de insumos que os comensais dejetam para os comidos.
Se a natureza fosse uma grande e complexa orquestra, poderíamos atribuir a cada membro, vegetal, mineral ou animal, uma função dentro dessa orquestra, menos para o homem. O homem seria a nota dissonante dentro da harmonia dessa imensa organização. Agora podemos perguntar: Porque esse animal racional e falante não se enquadra? Por que é o único ser que “rema contra a maré” por assim dizer? Parece que esse animal bípede não se acostumou devidamente com seu cérebro grande e criativo de concepção ainda recente. É razoável supor que depois que o cérebro humano se desenvolveu e deu ao seu portador esse imenso poder, essa capacidade tão grande quanto desconhecida de criar e deduzir coisas, o homem ainda não tenha “se acostumado” a usá-lo devidamente, não saiba controlá-lo para obter dele eficiência e trabalho produtivo de longo prazo. Algo assim como colocar um carro de fórmula um na mão de um neófito que mal sabe dirigir. É de se esperar que nada de bom saia dessa combinação: amador & máquina potente. Daí, podemos inferir que se não nos destruirmos nos próximos milênios e consigamos sobreviver apesar de nossa bisonha manipulação do cérebro “fórmula um” que temos, teremos, enfim, lucidez para perceber nossos erros e nos redimirmos. Só então, como o astronauta David do filme “2001 Uma odisséia no espaço”, renasceremos (como espécie e não como indivíduos) em nós mesmos e viveremos em paz e harmonia com a natureza. JAIR, Natal, 29/03/12.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Sandices alimentares



Está escrito e não podia ser diferente, alimentar-se é uma necessidade básica dos seres vivos, vem antes da segurança e da impulsão sexual com intuito reprodutivo. Alimento só não tem prioridade sobre respiração e sede, e isto significa que se estivermos respirando e tivermos água à nossa disposição, nossa necessidade primeira é comer. Consequência disso, a busca por alimentos nos primórdios impulsionou o nomadismo do Homo sapiens, de modo que essas peregrinações o levaram a ocupar quase que todas as regiões habitáveis do Planeta. Não é exagero afirmar que a fome criou a civilização, ainda que de forma indireta. Homens que se locomoviam em busca de fontes alimentares acabavam descobrindo e se fixando em locais antes desabitados, construindo novos aldeamentos e enfrentando novos desafios inerentes a esses lugares, de forma que suas descobertas e invenções estavam atreladas a esses ambientes. Novas conquistas representavam enriquecimento cultural e base para civilizações diferentes daquelas anteriores.
Também é compulsório observar que a relativa abundância alimentar facilitava, e às vezes até impelia, uma maior densidade demográfica, isto é, a equação era simples, mais comida mais gente. Não é segredo algum que mais gente significa mais cabeças pensantes e possibilidade maior de existir gente mais capacitada no meio dessas pessoas. Onde há gente capacitada (inteligente) novas criações e aperfeiçoamento se tornam mais fáceis, ou seja, inventos, métodos novos e técnicas melhores se desenvolvem, então teremos forças atuantes em direção a qualidade de vida melhor.
Comendo a humanidade cresceu, multiplicou-se, adquiriu força de, em princípio, dobrar a cada vinte e cinco anos. Muitos anos depois, no início do século dezenove (1803), Thomas Malthus, economista britânico, desenvolveu uma teoria que publicou num trabalho: "Um ensaio sobre o princípio da população ou uma visão de seus efeitos passados e presentes na felicidade humana, com uma investigação das nossas expectativas quanto à remoção ou mitigação futura dos males que ocasiona”. No qual ele afirmava que o Planeta estava fadado a entrar numa crise mundial de fome porque a população aumentava em progressão geométrica enquanto os alimentos só podiam ser incrementados em progressão aritmética. Como o homem era respeitado em seu campo de conhecimento, causou certa inquietação sua teoria então chamada malthusianismo. Na verdade, ele havia subestimado o desenvolvimento e adoção de técnicas modernas de plantio, descobrimento de fertilizantes e defensivos agrícolas que matavam as pragas, então verdadeiras dizimadoras de colheitas. Muita fome fustigou o Planeta desde então, mas nada tem a ver com falta de alimentos, o que existe é uso político dos alimentos e má distribuição de recursos.
Bem, e no varejo, no dia-a-dia das pessoas comuns, como a alimentação influiu nos costumes? Pois é, como o bicho homem havia se espalhado por quase (faltou regiões polares e alguns desertos muito áridos) todo o Planeta, acabou encontrando diferentes condições de produção de alimentos, bem como plantas e animais diferentes que se prestam para a domesticação com fins nutricionais. Assim, é perfeitamente natural que o povo inuit (também conhecido como esquimó) que vive no círculo ártico, não tenha em seu cardápio alimentos vegetais, eles são comedores de carne crua, ou seja, são omófagos de tempo integral e vitalício; também, não se deve estranhar que habitantes do norte África, região onde se situa o deserto do Saara, comam gafanhotos, por exemplo. Cada um se vira como pode e de acordo com os recursos disponíveis.
E quanto ao geral, como está a produção de alimentos no mundo? Vai bem, obrigado. Hoje há excedentes de alimentos nos países desenvolvidos e desperdícios na ordem de trinta por cento dos produtos agrícolas produzidos, segundo a FAO. Há tanta comida sendo produzida em países como os EUA e os mais desenvolvidos da Europa, que o excedente daria para alimentar todas as pessoas que sofrem de desnutrição crônica da África e ainda sobraria algum. Então o que é feito dessa comida toda? Simples, os americanos comem o equivalente calórico ao que três pessoas “normais” deveriam comer para manterem-se saudáveis e produtivas. As protuberâncias abdominais dos americanos, suas doenças do coração e suas academias lotadas são provas desse exagero. Hoje morre mais gente por doenças coronárias e excesso de peso do que de fome neste planetinha azul. Será uma espécie de punição da natureza para com aqueles que não enxergam a má distribuição calórica e protéica no mundo? Não sei, e se alguém sabe deveria berrar, pois o bom cabrito é aquele que berra prá caramba.
Reconhecendo algumas aberrações dignas de nota como o canibalismo, o homem comeu e come praticamente tudo que se move na face da terra, além de milhares de espécies de plantas e fungos. O bicho maior come o menor é um bom adágio para explicar como, na natureza, se comportam aqueles que constroem a cadeia alimentar, tantos os predadores quanto as presas. Já, com respeito ao bípede falante e presunçoso, ele come os menores e os maiores também, falta-lhe humildade para se enquadrar nas regras que vigem entre os animais em estado natural. Sem contar que alguns povos comem bichos selvagens os quais poderiam ficar quietinhos nos nichos, pois não falta proteínas entre esses predadores infames. Os japoneses são o exemplo mais contundente e vergonhoso dessa infâmia, matam baleias para servir sua carne como iguaria fina para os muito ricos, justamente aqueles que não estão nem perto da linha de fome. Se houvesse falta de proteínas no Japão, até seria quase compreensível que eles assassinassem esses mamíferos magníficos, mas não é esse o caso, a carne de baleia no Japão é vendida por algo em torno de trezentos dólares o quilo.
Às vezes eu sinto vergonha de pertencer a essa espécie que gasta bilhões em comida para animais de estimação e não olha os da mesma espécie morrendo de fome no Sudão e na Somália.
Imagino que a pressão da enorme expansão populacional deverá estimular inovações destinadas a superar o problema de milhões de bocas a serem alimentadas. Podemos imaginar que na ausência desse estímulo as inovações podem não acontecer, as grandes realizações humanas sempre foram antecedidas por pressões formidáveis, é só lembrarmo-nos das tecnologias desenvolvidas em consequência das guerras. Será que podemos contar com uma inversão dessa tendência mundial de poucos comerem muito e muitos comerem pouco? Fica a pergunta. JAIR, Floripa, 28/01/12.