quinta-feira, 31 de maio de 2012

Complexidade

Primeiro existia o nada absoluto, algo assim tão radicalmente imaterial, tão insubstancial que nossas limitadas mentes humanas são incapazes de captar na totalidade. Depois, segundo uma teoria amplamente aceita, dessa ausência total de qualquer coisa, houve uma expansão súbita, uma absurda e tão rápida expansão que resolveram chamá-la de Big bang. Embora o Big bang tão tenha sido uma explosão, é a partir desse instante (bilionésimos de segundos) que se criou trilhões de partículas sub-subatômicas, numa temperatura mais alta que temperaturas do interior de estrelas atuais. Ainda não existiam átomos ou quaisquer de suas partículas conhecidas como prótons, nêutrons e elétrons. Mas, na medida que esse universo se expandia, esfriava e as minúsculas partículas sub-subatômicas se combinavam e formavam os elétrons, nêutrons e próton, o processo adquiriu impulso próprio de modo que essas partículas se recombinaram e formaram os primeiros átomos de hidrogênio, a partir daí esses átomos se uniram formando moléculas que reunidas em imensos aglomerados construíram as primeiras estrelas. E, como sabemos, estrelas nascem, vivem e morrem, mas à cada morte de estrela corresponde uma liberação de bilhões de bilhões de toneladas de matéria. Essa matéria, “poeira de estrelas”, é que formou tudo que vemos e conhecemos, todas as coisas vieram de estrelas primordiais que já não existem mais.
Criada a terra, surgiram mares, uma atmosfera, calor do sol e terras secas, tudo combinado de forma a favorecer um aumento na interação das moléculas de forma deixá-las mais complicadas. Então, cerca de 3,7 bilhões de anos atrás, substâncias bastante complexas concentravam-se localmente, talvez em gotículas em suspensão, ou espuma que secava nas margens dos mares. Sob a influência da energia dos raios ultravioleta do sol, combinavam-se em moléculas maiores e mais, muito mais organizadas. Pode-se perguntar por que isso não ocorre hoje. Moléculas assim seriam rapidamente absorvidas, degradadas ou devoradas por bactérias e outros seres vivos. Naqueles tempos as grandes moléculas orgânicas podiam boiar livremente no caldo cada vez mais denso sem serem molestadas. Num dado momento formou-se por acidente, uma molécula notável, uma molécula que podia replicar-se. Então, teria surgido a vida.
Claro que essa explicação é apenas provisória até que surja outra melhor que seja reproduzível em laboratório, por exemplo. Mas o que quero focar é o que veio depois. Há provas fósseis que os seres vivos primitivos eram incrivelmente simples, monocelulares, geneticamente descomplicados e todos viviam na água. Então, há algumas centenas de milhões de anos, algumas espécies anfíbias se adaptaram e passaram a viver mais tempo na terra que na água, daí a marcha da evolução premiou aqueles seres que tinham maior adaptabilidade e transformou-os em animais terrestres. E esses animais, agora num ambiente diferente, desenvolveram aptidões e particularidades que os tornaram organismos significativamente mais complicados que aqueles que viviam nas águas.
O que se depreende então dessa reorganização da matéria? O resultado de reunião de partículas que formam átomos, depois moléculas e estrelas que acabam fornecendo matéria para a construção de tudo, é que, desde o Big bang o universo tende à complexidade. A marcha do universo está caminhando do simples para o cada vez mais emaranhado. O produto final dessa tendência à complexidade não está ao alcance de nossas mentes, mas existe. É só atentarmos para o reino animal, por exemplo. Organismos simples como bactérias são seres notavelmente mais antigos que organismos surgidos depois cujos arranjos moleculares são complicados como os vertebrados e, dentro da classe dos vertebrados, podemos afirmar que os que vieram depois são mais complexos que os que vieram antes, vale dizer, peixes, são mais simples que aves, que são menos complexas que mamíferos, então tudo caminha para complexidade extrema. Não há nada que indique que algum organismo vivo tenha alcançado grau de complexidade absoluto, nada nos faculta afirmar sequer que exista um grau absoluto de complexidade. O que observamos, e está perfeitamente claro, é que existe uma tendência definitiva à complexidade.
Alguns místicos e supersticiosos usam essa marcha da natureza para justificar um Ser anterior que a tudo teria criado e que estabeleceu um final onde a criatura ao atingir a complexidade absoluta encontraria esse Criador, teria se tornado a imagem de Deus. E mais, há os que acreditam que o ser humano é a criatura escolhida pelo Criador para se tornar o ser absoluto, apesar de que os organismos dos mamíferos têm o mesmo grau de complexidade. E o homem, não obstante sua inteligência supostamente superior aos demais, é o animal mais perverso de todos. Donde se depreende se o Ser supremo for perverso o homem é candidato ideal a tornar-se igual a ele, mas se a bondade e tolerância forem atributos necessários à sublimação do ser humano até tornar-se imagem do Criador, ele está fora do jogo, não é mesmo? JAIR, Floripa, 29/05/12. 

terça-feira, 29 de maio de 2012

Cérebro e mente


Descartes, matemático, físico e pensador francês, em suas obras instituiu o conceito que mente e cérebro são coisas separadas, constituídos de matérias distintas e regidos por leis distintas. Sendo o cérebro uma espécie de hardware, um disco rígido que contém toda a memória e os circuitos que permitem processar os sinais externos e transformá-los em ações ou outros pensamentos, e regido pelas leis da física. Já a mente seria algo etéreo que não ocupa espaço nem obedece as leis da física. Ou seja, algo não tocável, algo impossível de ser contactado pela ciência ou algo que possa ser localizado no cérebro. E essas “leis” da separação entre cérebro e mente vigiram por quatrocentos anos enquanto a ciência, pacificamente, aceitou o conceito proposto por Descartes.
Já no século dezenove, a medicina mapeou toscamente o cérebro e determinou categoricamente que ele era composto por “zonas” funcionais e que estas correspondiam rigidamente a partes, órgãos ou membros do corpo, esse conceito foi chamado de localizacionismo. Assim, se houvesse lesão na zona correspondente à mão direita, por exemplo, esta deixava de funcionar. Ainda mais, definiu-se que o cérebro era uma “caixa preta” que não se regenera, sendo que depois que completa seu crescimento aos seis anos de idade, torna-se uno e acabado de forma a não sofrer transformações e adições, e passando a perder massa depois dos quarenta anos.
Corroborando o que já se aventara no século dezenove, no início do século vinte, o neuroanatomista e prêmio Nobel Santiago Ramón y Cajal aderiu à tese que o cérebro, ao contrário, de tecidos e órgãos, era incapaz de se regenerar. Dado a proeminência de quem falava ficou patente que essa era uma verdade incontestável. Sabia-se que milhões de neurônios morrem à medida que envelhecemos, enquanto outros órgãos constroem novos tecidos a partir de células tronco, e que essas células não eram encontráveis no cérebro. Segundo supunha-se, a explicação para essa ausência de células tronco se devia ao fato que o cérebro era ultra especializado e extremamente complexo de forma que perdeu a capacidade de produzir células de reposição. Supunham os cientistas que um “neurônio novo” não poderia assumir a função de outro já degradado em razão deste ter milhões de conexões com seus pares e constituir uma “peça” especializada que levou anos para se formar, daí ser impossível substituí-la, a “peça nova” ficaria sem função, algo assim como substituir um cientista falecido por uma criança sem qualquer noção. Ramón afirmou que num cérebro adulto as vias nervosas são fixas, concluídas e imutáveis. Os neurônios que morrem não podem ser substituídos e nada se regenera.
Só que em 1965, cientistas do MIT (Massachussetts Institute of Technology) descobriram células troncos nos cérebros de ratos. Chamaram sua descoberta de células tronco neuronais. Em 1980, ornitólogo Fernando Nottebohm, notou que certas aves canoras mudavam ou melhoravam seu repertório de cantos a cada primavera, e isso era intrigante. Feito a dissecação dos cérebros dessas aves ele notou que haviam adquirido novas células neuronais responsáveis pelo canto. Daí, outros cientistas, considerando que cérebros são cérebros, independente se são de aves ou de humanos, puseram-se a examinar cérebros de primatas e, como era esperado, encontraram as células-tronco neuronais já encontradas em ratos.
Com a continuação das pesquisas foram encontradas células-tronco neuronais ativas no bulbo olfativo, no septo e medula espinhal humanas. Essas descobertas estabeleceram que, ao contrário do que se admitia antes, o cérebro é plástico, ele tem capacidade de recuperação e reposição de massa perdida. A plasticidade substituiu, portanto, a rigidez até então admitida. Dissecações de cadáveres humanos recentes mostraram neurônios novos mesmo em doentes terminais de idade avançada. Era a prova definitiva que o cérebro tem capacidade de reposição de massa perdida.
Estudos mais recentes também derrubaram o localizacionismo, quando o cérebro perde alguma parte por acidente ou doença, outra zona, geralmente localizada nas proximidades, assume a função da área perdida. Existe um caso excepcional de uma mulher de Falls Church, Virginia, EUA, que nasceu só com a metade direita do cérebro e esta “assumiu” as funções do lóbulo esquerdo de forma que Michelle, esse é seu nome verdadeiro, hoje com quarenta anos, é uma pessoa quase normal com relação à inteligência, capacidade de ganhar a vida com seu trabalho e atividades do dia-a-dia, conseguiu até formar-se num curso superior.
Além dessas constatações, a ciência descobriu que nosso cérebro também se modifica a partir do uso, quanto mais o usamos mais ligações se constroem entre os neurônios. Isso quer dizer que, mesmo adultos e até idosos, têm seus cérebros modificados pela utilização. Nossa cultura modifica o cérebro tanto quanto este modifica a cultura. Homens de tempos anteriores à era industrial que não conheciam carros, aviões, foguetes espaciais e informática tinham um cérebro muito diferente (fisicamente) do nosso que somos obrigados a lidar com essas informações virtualmente novas. Em consequências dessas descobertas fica, portanto, abolido para sempre o conceito cartesiano da separação entre cérebro e mente. JAIR, Floripa, 26/05/12.     

domingo, 27 de maio de 2012

Sandice

Dia ainda, mandorovás e tainhas liderando multidão de outros calembures, disputando atenção de teocráticos e berrantes, nada diferente das demais manhãs que precederam aquela. Nenhum néscio iria perceber a borduna e o alumbramento que, normalmente, acompanham os desbordes alternativos de campanha tão trápica. Estávamos na era dos prebócides e das vespas segmentadas, o mundo já se acostumara observar catadupas e vórtices oriundos, dizem, da obliqüidade da elíptica. Então, por mais que tudo parecesse presbítero ou arcano, não havia porque sibaritas de outras plagas adelgaçarem o fino tecido epitelial da abordagem endogênica pelo simples prazer da inutilidade ibérica dos costumes bastardos e já quase esquecidos no fundo do baú da necedade.
Balestras acúleas, tradicionais em quase todos os continentes, nada significam se não forem acompanhadas vis-à-vis de hospedeiros heterodoxos, mesmo que incorram em dispêndio anular de bancarrota ignomiosa. Sabendo-se que depois de tudo, polímatas e papalvos se encontrariam no ignoto, cientes de suas conexões prismáticas únicas no universo conhecido e até desconhecido talvez. O declínio dos filactérios edênicos era outra preocupação inerente, nada do que se fizesse em razão das alabardas e dos uzbeques parecia se interpor entre aquilo que era esperado e o declínio potencial da Habillié mal formada por falta de Sponsor reconhecido pela Intelligentsia responsável e reconhecida pelo poder absoluto que se pressentia no horizonte de eventos.
Mais que a tradicionalíssima Ouverture, era de se esperar empenho máximo dos que labutavam abaixo da linha de cosméticos, alguma luz no fim do túnel do carpo, nada excepcional, portanto. Na Trácia, local avesso a conluios viáticos, propagava-se quase à luz do Sol, que se avizinhava o mais recôndito e aprazível endosso sistemático de brasões e congêneres. Era crucial que se tomasse por favas contadas tudo que dissesse respeito às ingerências estapafúrdias dos assim chamados pavões descoloridos de cauda cinzelada. Se assim fosse, tudo estaria definitivamente perdido para àqueles que desalinharam a Vaterland, obviamente ignorando as origens escusas dos membros seniores da alta satrapia forense subalterna. Ninguém se eximiu de apontar o dedo, nem sempre honesto e imaculado, para o fulcro do problema que obstruía os canais lacrimais que todos tinham, mas teimavam em não admiti-lo.
O equilíbrio do Universo peculatário não estava exatamente ameaçado, contudo, ainda que prímulas hortenses tenham sido detectadas no átrio da metonímia, nada poderia mudar o estado latente de tensões pré mencionadas nos anais díspares da Dolce far niente esperada para o próximo lustro. Até monastérios antes considerados imunes ao contágio expiatório, já se propunham a alastrar ditames e cordéis entre o populacho lascivo das outrora priscas vertentes janízaras da Abissínia. O mundo se convertia a olhos vistos às inferências atiladas dos moluscos bosquímanos nem sempre tão simétricos e tão pouco verazes. Dia após dia, muares combinado sua acurácia ao bom senso ditirâmbico de jacus rabudos tupiniquins, promoviam disparates que não ajudavam em nada o já deteriorado metrônomo das visões místicas noturnas.
Vítimas da obsolescência vertical dos módulos adriáticos, uns consolavam outros na falta de eflúvios benéficos na ordem das coisas imagéticas. Havia esperança é claro, a Turíngia já apresentara em duas ocasiões distintas a Soi-disant que deveria colimar efêmeros e dissidentes dos austrais até o mais ínfimo restolho. Ainda mais, levidade e sutileza eram obróbios válidos se não houvesse necessidade de alavancar céspedes e vênulas sapientes em todo território vernacular das centúrias palacianas e até no capitólio de ventos alísios.  Ainda que individualmente fizesse sentido aprazar mais verrumas para sancionar os trejeitos estentórios que vaticinavam mais abalos sistêmicos, não havia necessidade de alavancar tais cornucópias holísticas se realmente viesse a transposição corpórea, nessa altura quase um acontecimento compulsório, não tenhamos dúvida.
Touché, poderiam os galecistas arriscar depois da derrocada tectônica que certamente o Planeta esperaria em razão do sectarismo faustoso que buscasse vênia nas platitudes. Santa paciência! Ninguém estaria estiolado a ponto de vergastar lâmias e menestréis no caso de derretimento da calota craniana, isso é um fato inoculto. Confrarias efusivas passaram a coser miçangas alucinógenas nas barras dos riachos borrascosos, viam nos parênquimas algum fútil retardo metalífero provavelmente eremita, não se sabe ao certo. Tudo girava em torno das commodities, mais uma vez terçadas de escorbuto bivalve, então para que versar? Mesmo que outros fulcristas enovelem lemingues e não se atenham ao que poderia toldar a partogênese, não sejamos ingênuos, Torquemada é apenas um nome, nada a retrever sem demora.
Clastros se fizeram ao mar, dizem, depois da manifestação telúrica que abravendou as vinhas do Lesoto, não sabemos ao certo, mas muitos conciábulos surgiram após o fato inusitado. O governo trifásico convocou bonifrates e multipolos para a avença sensorial que se propunha impregnar o laboide da periferia. Nada sobrou depois dessa manifestação tão escrutinosa de sapiência constipatória, valeu a intenção dos verbenos, penso.  Ligamentos fisiológicos atenuantes deveriam ser levados ao escárnio da verve ululante, só assim faria sentido abramir os eventos posteriores, mais muitos não acreditavam em ditames aberrantes, até porque já estavam carpados de esperar vigotes brâmicos, é uma pena porque nada sobrou depois da peralvia.
Nesta ocasião a Gestalt dos novos girinos perfaziam a totalidade das monções vindouras, ainda que isso significasse um quase retorno à total ausência de Degradé aviltante da mais baixa ordem. Que fazer, não é mesmo? Tríduos Appartachic eram apenas mais uma ordenança fragilíssima frente ao desencadear de emoções ferinas dos que ignoravam a cerca do Shiatsu imposto a ferro e fogo àqueles que não concordassem com o alumbramento discórdio das aves marinadas. Imaginemos um oceano de logomarcas peleando os menores rapunzéis permeados de flicts (lembrando Ziraldo), que se ecomeassem, não pela pele pálida, mas pelo sânscrito inaudito de suas verborréias quase indecentes e fátuas. O mundo seria bem melhor para quem aplastasse tais semânticas velhas, porém boas.
Isso é quase uma via de mão única para abstinência de flatos ostentatórios que conduzem à bizarria, o mais das vezes. O tempora, o mores, como seria vértico e muito mais sobreiro se neste Planeta percóstico tivéssemos um mínimo de soluções escolásticas tradicionais em vez de sóstenes e arbítrios que visam apenas proçar têxteis novéis. Em Sotto voce. Floripa, 25/01/12

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Black boy


A planta “Black boy” australiana, na verdade é uma espécie só encontrada naquele país, a Xanthorrhoea Australis. Ela é um vegetal que os povos aborígines têm usado para fazer suas lanças desde que o mundo começou, segundo eles, há milhões de anos atrás, período que eles chamam de dream time, na falta de como nomear o passado distante. Quando a planta torna-se adulta, uma grande haste sai do topo, onde surgem milhares de flores que irão gerar muitas vagens. Essa haste é colhida e endurecida no fogo para ser transformada em lança com a qual os nativos caçam marsupiais e répteis e arpoam peixes em águas rasas.
Comumente chamadas de árvores grama, Grass tree, nome inapropriado porquanto não são árvores e sim arbustos, as plantas Xanthorrhoea também são conhecidas como balga pelos aborígenes, que é o termo da língua Dyirbal para menino negro, Black boy. Os aborígines provavelmente chamam esses arbustos de balga, porque depois de um incêndio, evento bastante comum naqueles semi desertos onde as plantas crescem, as folhas inferiores queimam revelando um tronco chamuscado preto com as folhas verdes em forma de capim que se estendem a partir do topo do tronco dando a aparência de criança aborígene segurando uma lança. De longe os troncos podem parecer troncos de xaxim, mas é engano, enquanto ao toque o xaxim é macio, os troncos do Black boy são duros como madeira.
Estive fazendo trilha numa ilha da costa leste, onde belos exemplares, veteranos de muitos incêndios provavelmente, podiam ser vistos elevando sua lança com tufos de flores de quatro a cinco metros de altura. Os tufos podem conter milhares de flores individuais e variam muito em tamanho. Tentei trazer algumas sementes, mas, parece, não eram férteis, deixaram de eclodir quando plantadas no meu jardim.
Os troncos enegrecidos podem ramificar uma ou duas vezes para formar cabeças compostas, mas mais usualmente é um único tronco com haste também única que ostenta uma “saia” de longas gramas como folhas de até um metro ou mais de comprimento. Imaginemos um xaxim com uma touceira de capim no alto, ao invés de folhas de samambaia, assim é essa estranha planta. As longas e estreitas folhas duras crescem de uma maneira aglomerada na parte superior do tronco de maneira a se tornar pendentes na medida em que se tornam mais velhas, de modo que o efeito é de tufos de relva na parte superior do tronco. O gênero está relacionado com os lírios, mas a maioria dos botânicos prefere colocá-lo em uma família separada, Xanthorrhoeace.
O nome científico é derivado do grego, o termo xanthos (amarelo) e rheo (fluxo) refere-se à goma amarelada que normalmente exuda das plantas. Essa goma é amplamente utilizada pelos aborígenes para fixar as pontas de suas lanças, e foi usada pelos primeiros colonos brancos como uma laca impermeabilizante substituta e verniz de grande durabilidade e bela aparência.
Grass trees são encontradas em quase todos os Estados da Austrália. Há um total de quinze espécies, sete das quais são encontradas na Austrália Ocidental. Como eu disse acima Grass tree é realmente mais uma planta lenhosa do que uma árvore. A sua vida útil foi calculada em 600 anos, mas pode ser ainda mais, visto que não desenvolve anéis de crescimento, então sua idade tem sido estimada através de outros testes menos confiáveis. Seu crescimento é muito lento, o tronco leva uma década ou mais para formar uma vez que é composto de uma massa de folhas soldadas por resina natural da planta.
O tronco em si é oco com uma espessura de parede de quinze centímetros aproximadamente, deixando um centro destituído do material que forma suas paredes, o diâmetro do tronco pode ser de até meio metro. O sistema radicular é como capim, raízes individuais de até cinco milímetros de diâmetro, e seu grande número ajuda ancorar a árvore firmemente no chão. Coisa estranha, o tronco oco é preenchido por material fibroso que liga a parte superior crescente com sua fonte de alimento, as raízes. Contudo, artesãos habilidosos conseguem fazer belíssimos e criativos vasos com partes desse tronco pouco comum.
Não bastasse tais estranhezas, a Black boy é uma sobrevivente da flora, assim como o crocodilo e o celacanto são sobreviventes do reino animal, essa planta vive na superfície do planetinha azul há mais de trezentos milhões de anos. Considerando que a cada quatorze milhões de anos a flora é substituída por novas espécies que surgem, a Grass tree ultrapassou a idade de aposentadoria há centenas de milhões de anos. Há registros fósseis provando que essa planta existia no tempo da Pangéa, nome que a ciência deu ao supercontinente que precedeu o atual leiaute das terras secas no Planeta.
Pois é, minha disposição em pesquisar e escrever sobre a Black boy está relacionada ao fato que importei quinze sementes e estou tentando desenvolver algumas mudas para plantar aqui no Patropi. JAIR, Floripa, 07/03/12.

terça-feira, 22 de maio de 2012

As coisas como são



Na maior parte do tempo nós, as pessoas comuns, observamos à nossa volta e externamos o que gostaríamos que fosse diferente, o que gostaríamos de consertar, mais ou menos assim: “seu eu fosse presidente...”, “se eu pudesse...”, “se dependesse de mim...” e por aí vai. É claro que esse é apenas um exercício mental retórico para discordar do que não nos agrada, é apenas a verbalização do que nos vai por dentro, mas não quer dizer que realmente faríamos aquilo que dizemos. Nossa discordância em geral se expressa na forma de como poderíamos transformar para melhor algo que dista daquilo que achamos ideal, normal ou desejável.
Na maior parte do tempo o que nos cerca – sejam objetos, procedimentos ou fatos - é resultado da cultura, dos comportamentos e das escolhas as quais estamos imersos; é o somatório de tudo que se inventou, descobriu, aperfeiçoou, transformou ou aproveitou da natureza. Nada do que nos cerca, seja aprovado ou não por nós, está aqui de graça, ou seja, nossa sociedade somos nós no sentido que a construímos como nossa cara coletiva, por assim dizer. A sentalidade da sociedade dá feição à cultura na qual está imersa.
Também é uma característica do ser humano gostar de certas coisas, agradar-se mais disso ou daquilo, fazer comparações destas com aquelas particularidades, estabelecer uma hierarquia do valor ou da necessidade das coisas. Assim, de modo implícito, “aprovamos” umas coisas em detrimentos de outras. Além disso, a complexidade de seres pensantes e críticos que somos, é produto das infinitas combinações do ambiente cultural no qual nos formamos, com nossas heranças genéticas e educação familiar que nos constrói uma personalidade única, diferente de todas as demais. Cada pessoa é singular e, portanto, reage ao mundo à sua maneira.
Pois então, é reagindo ao mundo à nossa volta que o modificamos, quer alterando o ambiente ao nosso talante, quer manifestando comportamentos próprios – não necessariamente originais ou estranhos - que se incorporam ao comportamento coletivo criando costumes imitados por outros. Assim, podemos lembrar que os “formadores de opinião” são aqueles que, seja pelo comportamento atípico, seja por uma personalidade dominadora ou por possuir meios adequados para esse fim, influem nas “massas” que os observam. Cantores, escritores, blogueiros, jornalistas, apresentadores de televisão, políticos, artistas, professores, empresários e tantos outros, em geral têm oportunidade de externar opiniões de forma a influenciar o público. Essa maior ou menor influência, em longo prazo, forma referência cultural que modifica comportamentos e o próprio “andamento” da civilização. Neste exato momento estamos sendo influenciados por tudo que nos cerca e influenciando, em maior ou menor grau, nosso ambiente. 
Essa inter-relação pessoa ambiente é que torna o que chamamos de cultura algo dinâmico, vivo, em movimento constante, tanto horizontal na linha do tempo, quanto vertical no sentido que as coisas de amanhã são a soma do ontem com as incorporações que se fizeram hoje, de modo que não há mesmice nem repetições monótonas. A civilização é evolução no melhor sentido, sempre para frente sem esquecer o passado, pois este serve de referência, ainda que o objetivo seja o aperfeiçoamento futuro. A civilização é o “empilhamento” de saberes e conquistas por nós efetuadas ao longo de gerações, a civilização é um quadro animado que reflete nossas escolhas como espécie e como comunidades. Esse quadro animado semelha-se a um caleidoscópio que a cada movimento, a cada átimo de tempo, enxergamos um momento diferente das coisas que o compõe. As “coisas”, no sentido lato do termo, são o que são porque não podem ser diferentes, nós assim as construímos. Somos agentes e receptáculos culturais de nossas ações desde as mais imperceptíveis e corriqueiras que dizem respeito ao dia-a-dia de cada um, até os grandes feitos e conquistas portentosas que afetam toda a humanidade ou a história desta.
Ou seja, para milhões de opções que poderíamos ter escolhido, optamos por estas que nos cercam, de maneira que vivemos no melhor dos mundos escolhido por nós, então, como espécie e como sociedade não temos do que reclamar, nossa civilização é produto de nossas escolhas. JAIR, Floripa, 22/05/12. 

domingo, 20 de maio de 2012

Comida


Nossos filhos são mais altos que nós. Essa constatação sem qualquer respaldo estatístico pode ser verificada praticamente em qualquer família com filhos adultos ou adolescentes. Não conheço nenhum estudo do IBGE ou de outro órgão oficial brasileiro que comprove definitivamente o que afirmo, contudo, nos anos cinquenta do século passado, nos EUA, fez-se uma comparação das alturas da geração nascida depois da guerra com a da pré guerra e ficou patente que a geração mais nova estava crescendo.  No Japão do pós guerra também se verificou que a geração nascida nos anos cinquenta estava apresentando altura de até oito centímetros, em média, maior que a anterior. No caso do Japão, o crescimento da nova geração chamou mais atenção porque os japoneses eram, (ainda são, mas a diferença diminuiu) na média, mais baixos que as pessoas do ocidente desenvolvido.
No Brasil de hoje até a média das seleções de vôlei e basquete cresceu. Há trinta anos as seleções eram seis centímetros mais baixas que as atuais. Então, a despeito de serem raros e não conclusivos estudos oficiais comparando as estaturas das gerações, a diferença existe. Pergunta-se, portanto, a que se deve esse crescimento? Resposta curta e grossa: comida. Pois é, quando falamos de estatura é impossível fugir de assuntos relacionados com a má alimentação e a desnutrição das crianças, algo que indicadores do IBGE relacionados à população infantil brasileira já diagnosticava na década de setenta.
Tenho sessenta e seis anos e quando minha geração nasceu a comida que se punha à mesa não vinha de grandes supermercados com disponibilidades quase infinitas de ofertas. Comia-se o que o armazém da esquina e as raras feiras livres vendiam. Pequena horta doméstica e uma criação de galinhas complementavam o que o armazém oferecia aos fregueses. Mesmo famílias mais abastadas não tinham opções onde suprir-se em variedade e abundância, apesar de não lhes faltar nada à mesa, a variedade não era muito superior a do pobre. E, comparativamente, os gêneros eram mais caros que nos dias atuais.
Meus filhos são cinco centímetros mais altos que eu. Quando eles nasceram foram alimentados com papinhas e comidas infantis inexistentes na minha infância, e a orientação alimentar que receberam facultou-lhes, quando jovens, serem mais seletivos quanto aos melhores e mais nutritivos alimentos disponíveis. As informações que minha geração dispõe também são muito maiores do que as que meus pais dispunham, de modo que, além do acesso à abundância, a qualidade do alimento de meus filhos também foi melhor e mais equilibrada. Daí, o crescimento passa a ser uma consequência natural.
Contudo, lembremos que a estatura das pessoas e de quaisquer seres vivos está contida na herança genética, então o fator crescimento não pode ser subvertido a não ser em casos patológicos. Como se explica o crescimento pela melhoria da alimentação, portanto? Simples, se estivermos “programados” geneticamente para termos certa altura significa que nosso organismo tem o potencial para crescimento, e não que seremos daquela altura, se faltar alimento seremos mais baixos. Assim, provavelmente, a geração da qual faço parte poderia ser mais alta se estivesse se alimentado adequadamente, como isso não ocorreu somos menores do que o programado. Consequentemente, se a alimentação encontra-se em déficit, a estatura das crianças e dos jovens é baixa. Porém, no decorrer dos anos os índices antropométricos de desnutrição e baixa estatura diminuíram por conta da melhora na qualidade de vida da população em geral.
De acordo com pesquisa do IBGE de 2009, os dados indicaram um aumento significativo no peso e estatura das crianças e tudo isso acontece por conta do acesso mais fácil à alimentação. O estudo revelou que as crianças e adolescentes brasileiros estão chegando cada vez mais próximo ao padrão internacional padronizado pela OMS.
Já, um país como os EUA onde se come muito e alimentos de alto teor calórico sem muito critério seletivo, a população provavelmente já alcançou todo o crescimento possível codificado em suas programações genéticas. Não é de estranhar, por consequência, que ao invés de crescer para cima os americanos do norte estejam crescendo para os lados, pois sabe-se que de cada três deles dois estão acima do peso, estão acometidos de obesidade mórbida. Esse é o recado que a natureza nos dá: coma bastante, mas não exagere, seu crescimento poderá continuar, mas em outro sentido e com resultados nefastos. JAIR, Floripa, 16/05/12.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Oblivo


Havia sido concebido em Israel, num Kibutz fundado por deslocados de guerra oriundos da Bucovina. Seus pais fugiram do país quando tropas nazistas, que já haviam batido os restos do exército romeno que lutara bravamente, mas sem eficácia, resolveram aplicar as leis do extermínio sobre os poucos judeus que ainda restavam nas aldeias pobres e arrasadas. Com auxílio de cidadãos bucovinos cristãos, Yacov Stein e Marta Stein conseguiram embarcar num transporte que os levou até Stambul e de lá, depois de muita emoção e perigo, conseguiram chegar a Benghasi na Líbia, onde após de alguns meses saíram para Londres. Viveram em Londres até o fim da guerra, donde saíram para Israel e o Kibutz, e, quase de imediato, para o Brasil, país escolhido aleatoriamente num mapa mundi. Até hoje é um mistério como aqueles dois judeus deslocados vieram parar em Palmeira, cidade onde não havia ninguém que professasse o judaísmo.
O filho do casal nasceu logo depois da chegada deles, Marta já estava grávida quando vieram para a cidade clima. Porque lhe colocaram o nome de Oblivo nunca perguntei, embora fosse nome um tanto exótico, não me parecia correto ficar xeretando o assunto. Até porque existiam muitos nomes pouco usuais no círculo de meus conhecidos de forma que Oblivo era apenas mais um.
Minha família morava, desde o fim dos anos quarenta, numa propriedade da empresa madeireira dos Malucelli na qual meu pai trabalhava. A casa se situava do outro lado da rua em que se situava a fábrica, aliás todo o lado oposto à fábrica era uma “vila” de casinhas iguais onde moravam os operários. Lá passei minha infância.
Seu Jacó, como chamávamos o pai de Oblivo, também era operário na madeireira. Humilde, discreto, bastante inteligente, seu Jacó tinha um forte sotaque que nós costumávamos nomear como “de polaco”. Os polacos eram abundantes na zona rural da cidade e muitos viviam e trabalhavam nas indústrias madeireiras, mas a maioria era composta por pequenos colonos que costumavam vender seus produtos nas feiras, por isso conhecíamos bem a maneira como eles falavam. Os poloneses e seus descendentes tinham dificuldade de pronunciar o “r” forte de “carro”, por exemplo, neste caso diziam “caro”, e em todas as pronúncias fortes do erre era a mesma coisa. Pois bem, seu Jacó falava com sotaque peculiar, desse modo, dona Marta e Oblivo também, embora este tivesse adquirido o sotaque por exposição e não de nascença.
Oblivo e eu éramos (ainda somos) amigos, daquele tipo que as pessoas costumam chamar de inseparáveis. Desde que me lembro sempre fomos vizinhos de rua, brincávamos juntos e costumávamos estar sintonizados em tudo que fazíamos. Não havia necessidade de combinar, “amanhã, as tantas horas!”, sempre um ia à casa do outro ou os dois se encontravam na rua sem ter previamente combinado. Ele era em tudo um garoto normal, alegre, ativo e muito companheiro para todas as horas. Só tinha uma particularidade, era incendiário. Tinha fixação por atear fogo em coisas. Para esse fim carregava uma caixa de fósforos que surrupiara da cozinha de sua casa. A caixa era o “instrumento” que alimentava a fantasia de pôr fogo nas coisas. Ao brincarmos nos terrenos baldios ou no campo, lá ia o Oblivo colocar fogo nos montes de lixo, nos restos de tábuas velhas ou no capim seco do campo. Onde houvesse fumaça, havia Oblivo por perto. Além isso, ele costumava “pensar grande”, sonhava que um dia provocaria um incêndio de proporções românicas (de Roma, naturalmente), algo que marcasse a história da cidade, um fogaréu, costumava dizer.
Corria o mês de janeiro de 1953, lembro com muita clareza, por que foi o penúltimo mês de minha infância antes de entrar na escola primária, cujo ano letivo iniciaria nos primeiros dias de março. Numa sexta feira à tarde Oblivo estava mais compenetrado e chamou-me para brincar num terreno próximo às nossas casas. Lá sentamos e ele, com ar grave, confessou que havia tomado a decisão de sua vida. Eu meio cismado nada disse, aguardei que falasse. Oblivo, em breves palavras disse que ia tocar fogo numa coisa muito grande nessa mesma noite, o incêndio do século iria iluminar a cidade e agitaria todas as pessoas. Eu não perguntei onde seria o incêndio nem ele falou mais nada, fomos para nossas casas.
Já à noite, depois da janta, nem lembrava mais daquela confidência, minhas prioridades eram outras e fui dormir cedo como sempre, sem maiores preocupações. Lembro que fui acordado por meu pai de madrugada, depois eu soube que eram duas horas da manhã, e todo o céu estava avermelhado pelo fogaréu. A madeireira do outro lado da rua havia pegado fogo, era um incêndio monumental como nunca a cidade tinha visto e certamente nunca mais veria. O fogo era uma coisa viva que se alimentava dos materiais combustíveis da fábrica. De proporções épicas, pois, para uma cidade de pouco mais de cinco mil habitantes, estava devorando instalações com cinquenta mil metros quadrados. Os barracões de madeira e todas as máquinas e material inflamável que havia dentro ardia em vórtices de fogo vermelho alaranjado, com explosões ocasionais de tambores de materiais combustíveis. O calor vulcânico faria inveja às fornalhas do inferno de Dante. Fomos levados para o campo que havia trás da vila por precaução, caso nossas moradas fossem atingidas pelas labaredas que não distavam nem dez metros. Roma sentiria inveja das proporções daquele inferno. O fogo durou mais de vinte e quatro horas, ficamos comovidos, amedrontados e maravilhados, coisa única na vida de qualquer um.
O incêndio não ceifou vidas, mas destruiu tudo, da madeireira só restaram cinzas e alguns esqueletos das máquinas que antes produziam os móveis e compensados. Não me lembro de ter visto Oblivo nos dias seguintes, mesmo porque os restos do incêndio ali tão pertinhos e tão interessantes não deixavam a gente desgrudar os olhos daquelas curiosidades inusitadas. Depois de cinco ou seis dias, calhou que nos encontramos, Oblivo e eu, conversamos como se nada suspeito houvesse naquele acontecimento. Eu nada perguntei e ele nada disse, apenas observei que ele estava sem a sempre presente caixa de fósforos. Oblivo, sem qualquer expressão no rosto, disse: - Não a carrego mais comigo, já não gosto. Parece que havia abandonado a piromania que o acompanhara até ali.
O incêndio acabou não trazendo grandes prejuízos para ninguém. A perícia efetuada pelos bombeiros exarou laudo culpando um curto circuito pela deflagração das faíscas que causaram o sinistro. Os Malucelli tinham seguro dos imóveis, das máquinas e do estoque, de modo que, dizem, receberam mais do que valia aquele patrimônio. Os operários foram convocados para limpar os escombros, tirar todo aquele entulho, depois foram incorporados à construção de uma nova fábrica, agora toda de tijolos. Não perderam seus empregos e acabaram trabalhando em instalações melhores, com máquinas novas e mais modernas. A cidade teve assunto para falar por meses ou anos, até hoje alguém ainda se lembra do INCÊNDIO, assim com letras maiúsculas. Oblivo e eu entramos na escola no mesmo ano, estudamos na mesma sala e continuamos amigos, embora nossas escolhas tenham nos conduzido por caminhos diferentes ainda nos vemos de tempos em tempos. Agora ele, aposentado, mora em Irati com suas filhas e netos, e quando nos encontramos, jamais tocamos no assunto incêndio. Diz um provérbio que “não se fala em corda na casa de enforcado”. JAIR, Floripa, 24/04/12. 

terça-feira, 15 de maio de 2012

Terremoto de Lisboa

As grandes catástrofes naturais que atingiram a civilização nas últimas décadas, como vulcões, terremotos, enchentes e tsunamis e até vazamentos de usinas nucleares como em Chernobil e no Japão ano passado, têm sido catalogadas como as maiores já acontecidas desde que o homo sapiens se pôs a registrá-las. Contudo, proporcionalmente, o maior cataclismo já acontecido foi o terremoto de Lisboa de 1755. Em primeiro de Novembro daquele ano ocorreu uma catástrofe tríplice na cidade e seus arredores que, sem qualquer concessão, foi o desastre maior que já atingiu a Península Ibérica. As 9 horas e 20 minutos da manhã a terra estremeceu e fez cerca de 100.000 mortos em virtude dos desmoronamentos, de incêndios que acabaram com o resto que havia sobrado e de três colossais tsunamis que se seguiram. Católicos de todas as cores e de todo o mundo rezaram por Lisboa e os lisboetas, porque a capital de Portugal era (ainda é) uma das cidades mais beatas do Planeta.  
Naqueles tempos ainda existia inquisição na Península, e tanto cristãos velhos como conversos, ou cristãos novos, praticavam um catolicismo de curral que não lhes permitia divergir um cagagésimo sequer dos ritos preconizados pela igreja, sob o risco de enfrentar atos de fé que poderiam até levá-los para a fogueira. Então, era comum os cidadãos encomendarem junto às suas paróquias, para depois da morte, uma infinidade de missas e solicitações de velas e rezas para que suas almas descansassem em paz. Naturalmente todas as missas e velas eram pagas antecipadamente. A inquisição, venal como era, via nessa “devoção” uma fonte de renda copiosa e inesgotável. E os devotos não tinham escolha, suas almas dependiam de seus recursos.
Contudo, para decepção dos católicos que haviam colocados suas fichas nessa loteria póstuma, sua devoção de nada adiantou e Lisboa foi punida como Sodoma o fora nos tempos bíblicos. Ficou registrado que o otimismo gerado pela filosofia de Leibniz, a qual afirmava que “vivemos no melhor dos mundos possíveis” e que havia contaminado as mentes européias, ficou extremamente abalado pelo virtual desaparecimento de Lisboa. O otimismo praticado não previa espaço para destruição de cidades, um acontecimento desses jamais poderia caber “no melhor dos mundos”.
Devemos lembrar que as obras de reconstrução da cidade coordenadas durante o mandato de Marquês do Pombal, eminência parda do reinado do pífio Dom José desde 1746, foram facilitadas graças ao esbulho do ouro vindo do Brasil que permitiu a reconstrução da nova cidade, moderna, no lugar da Lisboa medieval que ainda existia nos finais do século dezoito. A reconstrução da cidade destruída tornou-se uma prioridade quando praticamente nem tinham terminado os tremores, ou seja, já no dia seguinte o plenipotenciário e despótico Marquês de Pombal começou a esboçar ideias para reconstruir aquilo que havia desaparecido e consertar o consertável. A despeito do péssimo juízo que se faz de Pombal pela sua suposta arrogância, por seu mandato ditatorial e pela expulsão dos jesuítas em 1757, é inegável que foi graças a sua energia que se puderam reparar os danos que o sismo havia causado. A história registra que ele começou dizendo "Enterrem os mortos e alimentem os vivos" e, arregaçando as mangas, tornou-se um trabalhador incansável que só parou quando a morte veio ao seu encontro. Em razão de sua determinação e capacidade de trabalho, Lisboa reergueu-se rapidamente e melhorou sob todos os aspectos, tornou-se uma cidade moderna.
Com um sismo de 9,0 graus na escala Richter, (esclarecendo, a escala Richter ainda não existia, mas os geólogos atuais deduzem os valores dos terremotos antigos pelos estragos que fizeram e pelos sinais que deixaram nas camadas do solo) a cidade estremeceu violentamente e começou a desabar como um castelo de cartas. Era dia de todos-os-santos e, por isso, calou fundo no imaginário carola da maioria da população. Nas casas ardiam velas nos oratórios, o que pode ter contribuído fortemente para o incêndio das ruínas causadas pelo abalo. O povão, apavorado pelos incêndios, correu como uma onda à zona portuária, local menos atingido pelas chamas. Foi aí que a coisa ficou mais feia ainda. Um enorme tsunami de mais de trinta metros de altura, galgou as beiras do rio Tejo e invadiu as ruas e casas já destruídas, e, em seguida, no rastro da primeira, vieram mais duas ondas gigantescas. 
Alguns fiéis, genuflexos e consternados, persignavam-se, elevavam os olhares para o céu na vã esperança que uma luz das alturas lhes viesse acudir, mas a massa daquele povo assustado tentou fugir das praias, mas tropeçava nos escombros e caía nas chamas, estava literalmente entre o fogo e o mar ameaçador. E os desabamentos das paredes que restavam, combinado com o fogo apavorante e a água que levava tudo de roldão, fizeram que metade da população da cidade morresse ou desaparecesse.  Montões de cadáveres despedaçados, queimados e afogados atestavam o poder fenomenal dos eventos. Para muitos, aquele Deus vingador do velho testamento julgara Lisboa e a condenara por seus pecados e iniquidades, como outrora fizera com Sodoma.
Contrariamente aos cidadãos comuns e escravos que viviam nas partes baixas da cidade em casas de qualidade inferior, a nobreza, o clero e os áulicos do poder habitavam construções de boa qualidade nas partes mais altas, então não é de estranhar que estes tenham, na sua maioria, saídos incólumes ou tenham tido prejuízos materiais de menor monta, quase sem perdas de vidas. O terremoto de Lisboa fora extremamente indulgente com as classes sociais altas e terrivelmente malévolo com o povão. Pareceu até justiça divina ao contrário. Eu hein! JAIR, Floripa, 29/04/12

sábado, 12 de maio de 2012

B-24 cai no Brasil


Quando, finalmente, em janeiro de 1943, o presidente Roosevelt convenceu Getúlio Vargas a entrar na guerra, este firmou um contrato que cedia bases no nordeste e norte do país às forças americanas em troca de uma usina siderúrgica (CSN) de última geração a ser instalada em Volta Redonda, RJ. O que se seguiu foi uma intensa construção de bases operacionais em Belém, Fortaleza, Natal, Recife, Salvador e Ilhéus com um afluxo imenso de militares americanos apoiando aeronaves que fariam a travessia do Atlântico rumo à África e à guerra no norte daquele continente.
Essa inusitada invasão de militares estrangeiros suscitou a criação de várias estórias relacionadas ao choque cultural de duas nações com costumes tão diferentes. Conta-se até que o termo forró nasceu dessa convivência forçada. Registrou-se que militares instalados em Pernambuco para construir a Base de Recife, promoviam bailes abertos ao público, ou seja, for all. Assim, o termo passaria a ser pronunciado "forró" pelos nordestinos. Nada comprovado, no entanto. Outra consequência quase natural de tantas aeronaves de guerra sobrevoando as regiões norte e nordeste, foram os acidentes aéreos.
O Consolidated B-24 “Liberator” era o bombardeiro americano de maior produção que qualquer outro avião americano durante a Segunda Guerra Mundial, e foi usado pela maioria dos Aliados durante o conflito. Era um bombardeiro pesado desenhado especialmente para voos de longa distância, tinha capacidade de levar 5800 quilos de bombas e era guarnecido por dez tripulantes. Grande número dessas aeronaves compôs as esquadrilhas que faziam pousos no Brasil para depois atravessar o Atlântico. Assim, as 09:15 da manhã do dia 11 de abril de 1944 a aeronave B-24 “Liberator” número de série 42-95064 da USAF solicitou ao centro de controle de Belém, informações sobre as condições meteorológicas. Foi a última comunicação que fez, nada mais se soube dela durante 51 anos.
Os EUA mantêm um órgão destinado a identificar restos mortais de seus soldados considerados desaparecidos em combate e procurar os possíveis parentes desses militares mortos. Esse órgão, Laboratório Central de Identificação do Exército  no Havaí (CILHI), já identificou milhares de soldados desaparecidos - especialmente do Vietnã - a partir mesmo de restos mortais diminutos, após um processo que envolve longas horas de análise científica e emprego da técnica de DNA. Pois, no ano de 1990, o CILHI recebeu informações que uma equipe de militares da FAB havia encontrado destroços de uma aeronave B-24 em uma área desabitada, isolada da floresta amazônica. Deslocou então 15 homens do exército para, juntamente com militares brasileiros, fazer a identificação da aeronave e, se possível, recolher restos mortais dos tripulantes.
Uma equipe da FAB ajudou os pesquisadores CILHI durante um esforço de recuperação de três semanas em uma área de densa floresta cerca de 50 milhas a nordeste do rio Amazonas próxima à cidade de Macapá, localizada cerca de 250 quilômetros a noroeste do destino do avião, Belém. Inicialmente os pesquisadores encontraram dois conjuntos de “dog tags” (plaquetas de identificação que os militares trazem penduradas no pescoço) e numerosos fragmentos de ossos no local.  Ficou patente, pelas condições dos fragmentos da aeronave, que todos os 10 tripulantes morreram na queda, não havia sinais que indicassem alguma possível sobrevivência. Duas semanas de escavação no local do acidente não acrescentou nada ao que já se tinha descoberto. Contudo, depois terem escavado vários metros de profundidade e estarem começando a perder a esperança, eles começaram a encontrar ossos, anéis e “dog tags” com nomes e as patentes escritas sobre eles. Onde o avião caiu um investigador encontrou uma carteira, e outro teria encontrado várias notas de dólar de 1944, concluiu-se que o impacto de alta velocidade da queda significava que pouco restou da aeronave. E a maior parte dos destroços - espalhados por uma vasta área e em repouso por 51 anos - nunca serão recuperados. Depois de três semanas, a equipe recuperou os restos mortais de todos os 10 tripulantes e realizou um serviço cerimonial para a tripulação em Macapá, capital do Amapá e, em seguida, os restos foram levados para os EUA. Em pouco tempo, mais tarde, os peritos forenses CILHI confirmaram que os restos mortais eram, de fato, da tripulação do “Liberator” 42-95064.
Os tripulantes foram identificados como sendo:
1 - Segundo tenente Edward I. Bares, piloto;
2 - Segundo tenente Robert W. Pearman, co-piloto;
3 - Segundo tenente Laurel Stevens, bombardeador;
4 - Primeiro tenente Floyd D. Kyte Jr., navegador;
5 - Sargento John Rocasey, artilheiro do nariz da aeronave;
6 - Sargento John E. Leitch, engenheiro de voo;
7 - Sargento. Michael Prasol, artilheiro de cauda;
8 - Sargento Herman Smith, artilheiro do ventre;
9 - Sargento Max C. McGilvrey, artilheiro da torre superior;
10 - Sargento Harry N. Furman, operador de rádio (substituto não registrado como tripulante efetivo).
O desconhecido Harry N. Furman não faz parte da tripulação original do avião, provavelmente substituiu o operador de rádio Sargento Abe Pastor, no vôo fatídico. O destino de Pastor é desconhecido. “É provável que o chefe da equipe de terra pode muito bem ter substituído um dos tripulantes, que teria ido por mar'', disse Kevin Welch, um veterano B-24. “Às vezes, algumas posições eram operadas por tripulantes não-membros''.
Os restos da tripulação foram enterrados no Cemitério Nacional de Arlington, Washington, no dia 20 de fevereiro de 1995. JAIR, Floripa, 04/05/12.
Dados sobre essa matéria podem ser encontrados nos saites:

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Desmatamento

A Constituição Brasileira, e, supõe-se, a maioria absoluta das constituições democráticas, foi erigida sobre suporte sólido, na ausência do qual o “edifício” Carta Magna não poderia se sustentar. Esses alicerces que suportam toda a estrutura legislatória do Estado são chamados cláusulas pétreas, itens “duros como pedra”, ou seja, são dispositivos impossíveis de mudança formal, constituindo o núcleo irremovível e irreformável da Constituição, impossibilitando qualquer discussão ou apreciação de matéria visando remover ou abolir esses princípios. No artigo 60 da Constituição, parágrafo 4º, estão as tais cláusulas: A forma federativa de Estado; O voto direto, secreto, universal e periódico; A separação dos Poderes; Os direitos e garantias individuais.
Obviamente não precisamos nem mencionar que “Os direitos e garantias individuais” são, de longe, os mais importantes. Esses direitos incorporam, na íntegra, a Declaração dos Direitos Universais do Homem, sendo que direito à vida, embora capitulado explicitamente na Constituição é o núcleo duro de todos os direitos não cabendo qualquer discussão a respeito.
Então quero ir um pouco mais longe, se torna-se necessário explicitar certos direitos, outros são tão óbvios e de tão marcada importância que discutir sobre a necessidade de incluí-los ou não na lei é ocioso. Vejamos, portanto. Alguém tem dúvida que a existência da humanidade e sua preservação é um direito implícito e irrevogável? Pois é, legislar sobre esse direito, sob qualquer pretexto, é de uma imbecilidade piramidal, mas é isso que se está fazendo no Congresso Nacional.
O que choca nesse caso de proteção ou desmatamento é a leviandade com que é tratado um assunto tão sério e tão primordial. A questão que está em jogo não é se queremos desmatar menos ou mais, a questão é se queremos sobreviver como espécie ou não; se assumimos ou não a responsabilidade pelo futuro das matas e, em consequência da humanidade. As picuinhas ideológicas, partidárias e até inconfessáveis limitam a visão daqueles que têm obrigação de pensar na humanidade, na vida, e não nos lucros. Os legisladores em questão, chamados ruralistas, obcecados com o dinheiro fácil obtido pelo desmatamento de áreas florestais, legislam com olho na caixa registradora, esquecendo suas responsabilidades com a vida futura. Na ocasião que Jacques Cousteau esteve no Brasil fazendo um documentário sobre o rio Amazonas, foi inquirido por um repórter sobre a necessidade de um Partido Verde. Ele se posicionou contra, e explicou: A questão ambiental é tão importante como os direitos humanos, nós não aprovaríamos um partido dos direitos humanos porque haveria a suposição que deveria existir partidos contra esses direitos, vale para a preservação do meio ambiente, se tivermos partidos que o defendam devemos concordar com partidos contrários a ele, e isso é inadmissível. Então, neste país de faz de conta, colocar a questão ambiental como um tema ser discutido como se fosse: será que o Flamengo é melhor que o Fluminense? é um acinte. Discutir a preservação ambiental é discutir se queremos um futuro para nossos (de toda a humanidade, não apenas os meus e teus) netos e, consequentemente, se queremos um futuro para o Planeta.
Há poucos dias estava em discussão no Parlamento uma matéria sobre trabalho escravo, será que nossos representantes não sabem que a escravidão foi abolida em 1888, e que, a partir de então, se tornou “cláusula pétrea” implícita nas nossas leis? Agora se discute se queremos ou não acabar com as florestas e arcar com as consequências dessa burrice. Me vejo obrigado a repetir aqui o que escrevi em “Florestas”: “A floresta não é apenas um aglomerado de plantas, não é a reunião casual de árvores, arbustos e outros vegetais; é um sistema tanto complexo como desconhecido que a ciência só agora está prestando atenção. Só quando as florestas deixam de existir por terem sido dizimadas pelos homens é que se torna imperioso observar o quanto elas significam. O exemplo mais cabal e contundente do significado das florestas ficou patente quando se descobriu a história dos rapa nui, povo que viveu na ilha da Páscoa e que, um belo dia, se extinguiu para sempre. Sabe-se que, a despeito dos rapa nui terem construído estátuas de cabeças gigantes com chapéu, (moais) as quais adornam a ilha até hoje e servem como atrativo turístico para o mundo, eles não atentaram para a preservação de suas florestas e tornaram-se vítimas de sua incúria. Há registros fósseis e arqueológicos que o povo rapa nui, numa fúria insana de construir estátuas, cabanas, artefatos e embarcações, acabou com todas as árvores existentes na ilha e isso prenunciou o fim da civilização e da coesão social culminando com a extinção das tribos e das pessoas”.
Senhores parlamentares, se tivermos vocação para rapa nui, então acabemos com nossas florestas como eles o fizeram e decretemos nossa derrocada a partir da aprovação dessa legislação florestal que está tramitando, acabemos com a cláusula pétrea que protege a vida, assumamos que não temos interesse algum no nosso futuro, só nos interessa o aqui e agora, cambada de energúmenos imprestáveis! JAIR, Floripa, 09/05/12. 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Olhando nuvens

Da minha janela leste
Não era um nefelibata, pois esse termo define aquele que tem “cabeça nas nuvens”, ou seja, quem não atina muito bem, pessoa que vive fora da realidade, em devaneio, sonhador, talvez até poeta, enfim. Era, antes, um apaixonado por esses seres mutáveis que adornam o céu sobre nossas cabeças pensantes. Estava totalmente fascinado por aqueles espectros gasosos que voam e se contorcem formando figuras sobre o fundo azul do céu. Sobre aquele azul propriamente chamado de cerúleo por traduzir uma cor só encontrável nas alturas e inimitável nas artes humanas. Nuvens eram seu hobby, seu norte e seu dia-a-dia, desde que acordava até o anoitecer quando aquelas fumacinhas esquivas se escondiam por trás da escuridão, ele as observava, analisava e se extasiava com suas convoluções, aspectos e movimentos. Havia aquelas alongadas e quase etéreas que sempre se punham lá no alto, bem acima das outras como a querer demonstrar que eram nobres, de uma casta superior que “não se mistura” com essas plebéias alvacentas e molengas que como se arrastam pelos ares inferiores e até poluídos, suas atitudes e altitude denotavam uma insuspeitada hierarquia núvica, se assim se pode dizer. Havia outras, apressadas, meio confusas, que pareciam não prestar atenção às elevações do terreno e até colidiam com elas. Havia as mais sonolentas, gorduchas e preguiçosas que quase não saíam do lugar desde que surgiam até quando desapareciam por causa de algum fenômeno que as fazia volatizar talvez. Havia outras ainda, muito altas como colunas celestiais que tinham um aspecto rancoroso e eram escuras, costumavam despejar catadupas, ventos e granizo causando confusão e estragos materiais. Havia as dengosas, as exuberantes, as tímidas e  as cheias de volúpia que pareciam querer seduzir os homens que as contemplavam. Existia aquelas abelhudas que colavam no solo e formavam o que chamamos de cerração ou nevoeiro, estas pareciam querer se imiscuir nos afazeres humanos e dificultá-los, tornavam-se nuvens dangerosas para os movimentos dos transportes terrestres, e entravam até nas casas se a porta estivesse aberta. Muitas eram molhadas e espalhavam seus rastros na forma de sereno, mas existiam algumas secas que não deixavam marcas por onde passavam. Eram muitas e variadas, mas havia dias que todas sumiam. O cerúleo do céu fica limpo, parecia dizer que todas as nuvens haviam se mudado ou estavam escondidas em algum lugar longe do alcance da nossa visão, mas ele sabia que não era nada disso, elas simplesmente estavam ali, só que transparentes, haviam entrado num estado que ele resolveu chamar de “da cor do ar”, pois todos sabemos que o ar nos circunda mas não podemos vê-lo. Se as nuvens estavam “da cor do ar” é porque elas estavam provavelmente descansando dos olhares curiosos que as acompanhavam quando se expunham, ele supunha que, assim como os animais do Planeta, as nuvens também precisassem de férias vez ou outra, sob o risco de se desfazerem ou se tornarem estranhas e mal formadas. Outra coisa que ele tinha certeza era que nuvens nascem, crescem e morrem, como morrem não sabia, mas o nascimento era visível nos lagos de águas calmas em manhãs frias, na chaleira fervente sobre o fogão, nas chaminés das caldeiras e até na respiração humana no inverno. Mas não sabia mais nada de concreto sobre esse ciclo vital, só tinha suposições que eram fundadas apenas nas suas observações que, diga-se, haviam nascido quase no mesmo dia que ele nascera. Sua mãe o havia colocado sobre uma toalha no gramado de casa poucos dias depois que ele veio ao mundo, e, como era inevitável, de barriga para cima, a primeira coisa que ele havia prestado atenção fora nas nuvens  estampadas como desenhos fofos naquele céu colorido de um azul brilhante. Desde aquele momento elas passaram a fazer parte de sua vida e, mais tarde, fora quase compulsório compará-las a algodão doce, carneirinhos e outras meiguices de sua infância. Viveu a infância e a mocidade inteiramente sob a égide dos castelos nebulosos que construía a custa de suas companheiras de jornada. Quando se viu diante da decisão de fazer algo na vida, não teve dúvidas, estudou meteorologia e tornou-se um meteorologista dedicado de tempo integral a sua causa. Deixou de ser estranho vê-lo contemplar os céus, absorto e sonhador, agora tinha como justificar sua paixão. Os termos técnicos que definiam funções e nomes de suas queridas em nada influíram no romantismo que punha nas suas relações com as nuvens. Cirrus, cumulus, stratus, nimbus e outras que pareciam híbridos como cumulonimbus, stratoscumulus , nimbostratus, cirrostratus, cirrocumulus, altocumulus e altostratus eram tecnicidades  necessárias a sua profissão, mas que não manchavam suas relações de longa data com as NUVENS, simplesmente. Fora um meteorologista dedicado e respeitável até se aposentar. Agora gozava de uma ociosidade ativa olhando as formações nublosas e lembrando que elas são tão interessantes e misteriosas como sempre o foram. Nuvens são apenas nuvens e não pretendem ser definidas em funções específicas com relação ao que os humanos esperam delas. Sejam quais forem nossas relações ou nossa informações a respeito das nuvens, o fato é que entre o céu e terra elas são soberanas; desde sempre são resultado e influem no clima e nas condições que tornam possível a vida sobre o Planeta e não há nada que possamos fazer para modificar seu caráter onipresente e atuante todo o tempo. Quando a humanidade já não habitar esse planetinha azul e o fim dos tempos para os homens tiver chegado, as nuvens continuarão aí ainda, formosas, flutuantes e volúveis, decorando o teto celeste sem ao menos se importarem com nós, e ressaltando nossa insignificância frente ao universo. JAIR, Floripa, 08/04/12.

sábado, 5 de maio de 2012

Pipas

Pipa tipo Bidê.
É natural inferir que praticamente todos que foram meninos nos anos cinquenta, sessenta, brincaram com pipas. Os nomes podem variar de região para região, de cidade para cidade ou até de bairro para bairro, mas a diversão é (ou era) a mesma: voar com os pés no chão. Como eu disse, as denominções podem variar, então temos além do nome genérico pipa, as variações: arraia, raia, papagaio, redonda, pandorga, cafifa, bidê, quadrado, piposa, pepeta, (g)jereco, barrilete, foguete e até joeira nos Açores.
Não é minha intenção inaugurar uma seção de saudosismo, contudo, é quase compulsório fazer algumas referências sobre minha infância vivida em Palmeira, cidade que não tinha mais que dez mil habitantes naquele tempo e que, por isso, não tinha grandes opções de lazer tornando o evento de empinar pipas algo saboroso e desfrutado com grande prazer pela maioria da gurizada. Época de pipas coincidia com férias escolares do meio do ano, não por acaso os ventos alísios eram favoráveis e os garotos passavam a dispor de maior tempo para a atividade. A temporada iniciava sem qualquer combinação prévia. Um belo dia, viam-se garotos saindo de casa com suas recém construídas pipas coloridas, havia um encontro informal num campinho desprovido de fios e postes, que em outros dias servia como campo de peladas. A disputa, se é que havia disputa entre os aficcionados, se fazia por exposição de pipas mais criativas, mais coloridas, mais elaboradas, dos artefatos que voassem mais alto ou por mais tempo. Adite-se que as pipas apresentavam uma variedade enorme de formas e tamanhos, fugia-se do mesmismo que impera nas criações de agora. Além disso, pipeiro de respeito jamais adquiria sua pipa no comércio, ele a confeccionava em casa sempre. Um empinador que comprasse uma pipa perdia prestígio e deixava de ser considerado autêntico pipeiro. Fui um pipeiro bem razoável, minha especialidade eram as pipas tipo “bidê”, as quais eu mesmo construía e até ganhava uns trocados vendendo aos menos habilidosos.
Certamente a tradição de soltar pipas mais antiga veio do Oriente, no Japão é mais que um simples hobby produzir e empinar artefatos sofisticados que colorem os ares. Lá há uma tradição que, cultuada por “pipeiros” profissionais, se traduz numa atividade a qual produz verdadeiras obras de arte voantes. Nós brasileiros acabamos conhecendo as pipas através dos colonizadores portugueses por volta de 1596 que, por sua vez, as conheceram através de suas viagens ao Oriente. Acredita-se que a primeira pipa do mundo tenha surgido na China, há cerca de 200 anos a.C. criada por um general chamado Han Hsin. Com o passar do tempo, as pipas que haviam sido criadas para fins militares, tornaram-se uma arte popular naquele país. Aos poucos, foram levadas para países vizinhos como Japão e Coréia.
De qualquer modo, as pipas adornam a atmosfera, disputam espaço com as nuvens, fazem acrobacias cheias de firula, colorem os céus e nos dão prazer. Pipas são a extensão natural dos braços dos aficcionados que, como asas, constroem a ilusão do voo. Ou assim deveria ser.
Infelizmente o que se vê hoje é uma perversa inversão do ludismo puro que devia permear uma atividade em princípio totalmente inocente e voltada ao lazer. Por alguma razão em total desacordo com o espírito esportivo que devia ser o motivador da atividade, empinar pipas passou a ser um evento potencialmente letal, adicionou-se à brincadeira o maldito cerol. Cerol é uma invenção diabólica que mistura vidro em pó com cola, que a maioria dos empinadores de hoje costuma colocar na linha de suas pipas para cortar as linhas das pipas de outros empinadores. Essa opção bélica de um brinquedo em princípio inócuo, já atingiu muitos inocentes causando mortes, principalmente de motociclistas.
As linhas de pipas tratadas com cerol adquirem um gume afiadíssimo que corta linhas e pescoços com a mesma facilidade. Essa atividade que pode ser chamada de criminosa é tão mais perturbadora por que, em caso de acidente com vítima, a responsabilidade, em geral, não pode ser atribuída a ninguém. Pelo fato de que linhas que decepam cabeças serem linhas enroscadas em postes, árvores, casas e muros e já não fazerem parte de uma pipa ativa, não têm como saber quem as deixou ali, até porque, em qualquer lugar que se encontre uma linha abandonada, muitos empinadores por ali estiveram. Além disso, em geral, as pipas cortadas por outras caem longe do pipeiro que as empinava, então a responsabilidade passa a ser difusa, não atribuível a ninguém em particular.
Pobre país que não consegue proibir o comércio de algo tão letal e não possui meios de coibir os que usam tal arma. Pobre país que possui uma legislação tão abrangente, ramificada e macarrônica quanto ineficiente e mal aplicada. Pobre Brasil varonil que vê dezenas de jovens motociclistas serem decapitados por improbidade ou displicência de outros jovens (e adultos também) e nada faz. Que país é esse que permitiu que se transformasse uma atividade lúdica num ato criminoso? Que país é esse no qual não se podem ver pipas no céu sem pensar que dali poderá resultar mortes de inocentes? Que país é esse? JAIR, Floripa, 28/04/12.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Jamais


Na verdade o nome do filme em português é “Não me abandone jamais” algo bem próximo do título inglês “Never let me go”, título de uma música que a protagonista Kathy H. ouve em fita cassete em várias ocasiões.
Se houver uma palavra que sirva para sintetizar a película será inquietante, e o sentimento que causa no espectador, eu diria que é um grande desconforto. A história se passa na Inglaterra e inicia nos anos 70 do século passado, portanto é uma ficção científica contemporânea, se assim se pode dizer. Sabe-se através de um narrador que as doenças todas haviam sido vencidas pela medicina em 1952 e que em 1967 a expectativa de vida é de cem anos. A nós, espectadores, parece uma notícia destituída de sentido.
Trata-se de uma geração de crianças internadas num educandário de nome Hailsham, um estabelecimento isolado do mundo externo e com padrão rígido de educação. Às crianças lhes é incutido que o mundo fora dos muros é hostil e até mortal, não lhes sendo permitido jamais sair das dependências do colégio. As referências das crianças são apenas seus orientadores, os quais dizem que elas são “especiais”, nenhuma informação exterior clandestina deverá ser considerada. Nada escapa do patrulhamento rígido de suas orientadoras.
Contudo, uma professora nova, estranhando que eles ignorem tudo sobre si mesmos, um dia lhes conta que eles são clones destinados apenas à doação de órgãos, diz-lhes ainda que não existe futuro para eles, quando receberem ordens farão duas ou três doações e depois “finalizam”, eufemismo que disfarça a morte prematura e compulsória que terão. Todos ficam sabendo que têm uma vida curta e sem qualquer sentido, são considerados apenas “peças de reposição”. Algo angustiante. Mas a professora que lhes contou tudo é demitida, então fica claro que não há outra escolha.
Quando atingem a adolescência os jovens são transferidos para uma fazenda onde encontram outros também com o mesmo destino, mas criados em outros educandários e supostamente mais cientes do “mundo lá fora”. Neste novo local circulam alguns boatos que se um casal estiver apaixonado e entre eles houver “amor verdadeiro”, a instituição a qual pertencem poderá dar-lhes uma prorrogação de vida. Ou seja, lhes será concedido três ou quatro anos a mais de vida até “finalizarem”, algo bem atraente para desesperançados clones que não têm futuro.
Bem, os protagonistas Kathy, Ruth e Tommy formam um triângulo amoroso em que Kathy e Tommy se amam, mas Ruth, sem explicação, introduz-se entre os dois e faz de Tommy seu amante. Kathy, magoada, não deixa de ter amizade com eles, mas torna-se amargurada.  Por esse motivo, ela resolve ser cuidadora, ou seja, uma espécie de assistente social que dá conforto e acompanha os doadores nas suas internações para doação; uma forma de adiar seu destino e de se afastar dos dois.
Passa algum tempo e Kathy, como cuidadora, acaba encontrando Ruth a qual não vê há dez anos. Ruth já fez duas doações e fará em breve uma terceira, o quê, quase com certeza lhe causará a “finalização”. Então é o momento que Ruth reatar a amizade com Kathy e ambas reencontrarem Tommy que se encontra em outra localidade.
Bem, não é o caso de contar o fim do filme e tampouco falar como cada um vê sua curta vida em particular. A história nos convida a uma profunda reflexão sobre vida e morte, sobre o objetivo de porque estamos aqui. Será que somos apenas peões sem outro destino que não morrer, seja uma morte “gloriosa” por uma causa, como supostamente morrem os soldados na guerra; ou morte comum num leito de hospital? E mais, seja qual for o fim, será um fim de vida que não dá sentido ao ato de viver? Algo assim: A vida é só isso?
Além disso, a certa altura, os protagonistas através de “ouvir dizer”, fazem conjeturas de quem seriam seus “modelos”, ou seja, quem seriam as pessoas que haviam fornecido o material genético que lhes deu origem. Chegam à conclusão que eram pessoas da escória, gente menos importantes cujas células agora transformadas em clones servem apenas para repor órgãos de gente de primeira, pessoas que realmente contam. É arrepiante, mas os clones parecem sugestionados por Pavlov, não ficam indignados ou questionam essa sua categoria de pessoas descartáveis, são passivos e só almejam viver um pouco mais, ganhar um tempo adicional de vida. Nesta altura pode-se fazer uma ligeira alusão aos nazistas quando viam um mundo nazificado onde subumanos, como eles chamavam os eslavos, por exemplo, seriam apenas escravos destinados a fornecer mão obra, suor e sangue para uma vida plena dos “arianos”.
Não sei, mas a obra dirigida por Mark Romanek, baseada num livro de Kasuo Ishiguro, escritor anglo nipônico, merece ser assistida, pensada e o jamais do título deveria ser o mote para refletirmos: jamais algo semelhante deve acontecer, sob o risco de nós perdermos para sempre aquele dom que supostamente é o que nos distingue dos outros animais e que chamamos de humanidade.  JAIR, Floripa, 14/03/12.