sábado, 30 de junho de 2012

A religião


Pelo que se sabe, desde que o Homo sapiens se identificou como um ser diferente dos demais seres que o cercam, formou comunidades cada vez maiores com os seus, e passou a pensar abstratamente, criou a religião. Essa crença visava (visa ainda), basicamente responder as perguntas que angustiam o homem: Quem sou eu? Onde me encaixo? E, desde que a religião passou a existir, prosperou, ramificou-se, dividiu-se, multiplicou-se por milhares e permeou todos os povos, culturas e nações.
Contudo, com o aparecimento da ciência com respostas para quase todas as perguntas, e o tempo dedicado ao viver moderno, científico e industrial, a religião passou a ocupar menor espaço na vida das pessoas de um modo geral. Na primeira metade do século vinte, muitos pensadores achavam que a modernização econômica e social estava levando ao desaparecimento da religião como elemento importante da existência e catalisador de comunidades. Claro que essa suposição causava angústia naqueles que deploravam tal tendência, mas agradava aqueles que achavam positivo tal fato. Os agnósticos e modernizantes aplaudiam o grau que a ciência, o racionalismo e o pragmatismo estavam eliminando as superstições, os mitos, as crenças, as irracionalidades e os rituais que constituem o cerne das religiões. A sociedade que estava emergindo ia ser tolerante, racional, pragmática, progressista, humanística e totalmente laica. Em contraposição com aqueles conservadores que viam com preocupação as graves consequências do desaparecimento das crenças e instituições religiosas, e da orientação moral que elas representam. Diziam que o resultado seria a depravação moral e a degradação e anarquia social.
Mas o que realmente está acontecendo? Criou-se um vácuo de crenças por acaso? As religiões definharam? Bem, não é isso que se observa, os percentuais estatísticos revelam que a humanidade está “mais” religiosa que antes da hegemonia da ciência e da tecnologia. Desde a criação das religiões elas tenderam sempre a aumentarem, não só no número de adeptos como no número de seitas disponíveis. Essa tendência continua, as religiões cristãs se multiplicam como se houvesse um fermento celestial que as estimula, e o número de crentes também se incrementa.
Pois bem, constatado esse aumento de religiões, como ficam aqueles adeptos do racionalismo e do pragmatismo? Resposta simples, criaram uma religião para si: a internet. Embora nenhum adepto fique fazendo proselitismo por aí e nem sequer admita a céu aberto que é um seguidor, a internet é uma religião a qual tem milhões de seguidores e continua crescendo. Calcula-se que daqui a algumas poucas décadas será muito maior que as três religiões monoteístas juntas, cristianismo, islamismo e judaísmo.
A nova religião tem seus apóstolos como Bill Gates, Steve Jobs (agora um santo, provavelmente) e Stephen Wozniak. Tem também milhares de acólitos e pastores seculares espalhados por todos os continentes. Tem seus altares nos domicílios e nas empresas em forma de monitores, onde os acólitos oram, recebem instruções e fazem seus pedidos, além de olhar para o futuro e o passado. Tem seus “templos”, chamados redes sociais, onde os seguidores se reúnem e trocam experiências. Tem até uma escrita própria que usa os dígitos um e zero para expressar-se.
E, contrário a outras religiões, os internautas não creem numa vida da alma após a morte, eles sabem que tudo que restará é o que estiver salvo em seus HDs. Suas preces são em forma de baites e bits e suas reuniões são virtuais nos chats. Não são adeptos ao uso de velas e círios, lhes basta elétrons, e que a energia não caia durante seus rituais. O céu não existe, o que existe e todos desejam é o Cyber space, lá todos se visitam e se conhecem, embora nunca se tenham visto o mais das vezes. Essa nova religião não pune, a menos que você tenha violado a privacidade de algum irmão. Existe pecado? Sem dúvida. Pecado é praticar ou difundir pedofilia pela rede, por exemplo.
Por ser uma religião recém desembarcada na civilização ainda lhe falta uma estrutura melhor para fortalecer o vínculo entre seus seguidores, ainda não existe símbolo que a identifique cabalmente como a cruz do cristianismo, a estrela de David do judaísmo e o crescente do Islamismo. Contudo, continuará crescendo e penetrará em todos os desvãos da sociedade humana num tempo muito breve. Amém. JAIR, Floripa, 25/06/12.   

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Sujando os mares


O terror que os oceanos representavam para os nossos ancestrais que supunham a Terra plana e com borda onde os navegantes poderiam cair foi, há muito, aplacado; também a formalidade quase acadêmica como eram descritos pelos grandes navegadores dos descobrimentos, foi deixada para trás; modernamente, os oceanos tornaram-se “entidade” representada em todos seus estados de ânimo pela sua dramaticidade, sua beleza cantada em verso e prosa pelos poetas e outros sonhadores, e sua violência quando tsunamis medonhos ceifam vidas aos milhares. Mas, além disso, essa entidade passou a ter relações muito mais próximas e cordiais com a humanidade dos tempos atuais – e isso, parece, tem muito a ver com o fato de seres humanos serem “terrestres”, em contraposição a seres aquáticos dos oceanos. Mar é a antítese de terra, daí o fascínio. A maioria dos bípedes falantes pensa no oceano com admiração, como um lugar de abrigo da mente, um local mágico onde se navega por pensamentos sem preocupações do dia-a-dia, um lugar cujas praias convidam ao dolce far niente. Devido às dificuldades da vida moderna, o mar passou a ser visto como um refúgio, um ermo sem multidões buliçosas, sem estresse; um lugar bem diferente da roda viva que é ganhar o pão de cada dia na indústria e nas atividades onde o dinheiro é o objetivo final. A vida a beira mar é um ideal procurado por grande parte do homem moderno.
Obviamente os mares ainda precisam ser cruzados e navegados, por motivos comerciais, por esporte, por curiosidade científica e até por motivo de guerra. No entanto, o oceano é algo a ser invejado, uma entidade merecedora de respeito e admiração. Mas, embora o mar seja para o homem fonte de proteínas, lugar de lazer, “estrada” que liga povos, nações e continentes e responsável pelo início de vida no Planeta, o bicho homem não o trata como deveria. Vejamos o que diz Rachel Carson no seu clássico “O mar que nos cerca” de 1951: “Embora o currículo do homem como guardião dos recursos naturais da terra seja desalentador, sempre houve um certo consolo na convicção de que pelo menos o mar era inviolável, além da capacidade humana de modificar e espoliar. Mas essa crença, infelizmente, mostrou ser ingênua. Ao desvendar os segredos do átomo, viu-se confrontado com um problema atemorizante: o que fazer com os materiais mais perigosos em toda a história do mundo, o subprodutos da fissão atômica... e, com pouquíssima discussão e quase nenhuma atenção pública, o mar tem sido escolhido como um vazadouro “natural” para os detritos contaminados...
É uma situação curiosa que o mar, onde a vida surgiu, seja agora ameaçado pelas atividades de uma forma dessa vida. “Mas o mar, ainda que mudado de maneira sinistra, continuará a existir: a ameaça é antes à própria vida”
No entanto, a poluição marinha, seja ela nuclear ou industrial, não é em si o problema mais grave e duradouro com que se defrontam os mares e oceanos. Porque o mar tem uma capacidade, ainda que limitada, de se limpar e se manter em forma. O pior é que hoje, a demanda sempre crescente de peixes, crustáceos e outros seres marinhos está pressionando um dos recursos mais frágeis dos oceanos e levando-o perto do ponto de ruptura. Para atender o insaciável apetite humano por frutos do mar, o homem está fazendo uma insensata sobrepesca em todos os mares. Em consequência o pescado está se esgotando muito depressa. As projeções mais conservadoras avaliam que daqui a quarenta anos não mais existirá peixes e outras vidas comerciáveis nos oceanos. Urge que nossa sociedade encontre caminhos alternativos como criação em cativeiro para que não caiamos naquilo que Rachel Carson escreveu com grande clarividência: “Mas o mar, ainda que mudado de maneira sinistra, continuará a existir: a ameaça é antes à própria vida”.
Há mudanças e degradação em todos os mares. Só nos resta baixar a cabeça de vergonha e reconhecimento de nossas fraquezas e incúrias: nós poluímos o mar, saqueamos o mar, desprezamos o mar, profanamos o mar que nos parece, o mais das vezes, existir só para nos servir. No entanto, a natureza de modo geral e o oceano em particular, estão nos avisando que haverá consequências se não guinarmos para atitudes mais racionais. E quais serão as consequências? Não sabemos, e talvez o melhor é jamais sabermos, não podemos arriscar numa aposta em que a própria vida está em jogo. JAIR, Floripa, 22/06/12. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sujando os ares


As aeronaves em voo são como imensas fábricas poluidoras e com sede voraz de combustível, e, por existirem hoje em tão grande número, algo em torno de vinte mil grandes jatos que transportam mais de dois milhões de passageiros apenas em viagens transoceânicas, a poluição que causam é extremamente preocupante. Muitos ambientalistas afirmam que os danos que esses monstros de alumínio causam ao frágil manto que é a atmosfera são alarmantes.
Ao voar a mais de dez quilômetros, belos e serenos, os aviões podem parecer aves metálicas inofensivas, mas, na verdade, estão deixando para trás longas trilhas de gases nocivos e nevoeiros cinzentos de partículas poluidoras. O querosene usado na aviação emite enormes quantidades de gases de efeito estufa que muitos creem estar contribuindo para o aquecimento do Planeta, sobretudo dióxido de carbono e óxidos de nitrogênio.
As quantidades dessas emissões são algo quase inimaginável. Num voo entre Londres e Nova Iorque, por exemplo, um Boeing 777 lança no ar nada menos que setenta toneladas de dióxido de carbono. Um 747, o segundo maior avião comercial em operação no mundo, despeja 540 mil toneladas de dióxido de carbono por ano. Se levarmos em conta as 475 mil travessias atlânticas que a aviação comercial faz por ano, algo em torno de 33 milhões de toneladas de dióxido de carbono são lançadas no lindo céu do nosso planetinha azul, isso sem contar os voos que não cruzam oceanos, voos domésticos e entre nações europeias, por exemplo. Excluindo todos os aviões de pequeno porte e a aviação militar, sobre a qual não se tem dados tabulados.
No entanto parece que há uma pequena luz no fim do túnel, se não for um trem em sentido contrário, podemos ter alguma esperança. Existem projetos para tornar essas viagens “neutras” no que se refere à emissão de carbono. Os motores de novíssima geração estão sendo reprojetados para consumir menos e aeronaves são construídas com ligas leves, de modo que estima-se 20% a menos no consumo do querosene altamente poluidor. Existe a possibilidade de produzir biocombustível para uso em aviação. A Azul Linhas Aéreas Brasileiras, em parceria com a Embraer, realizou um voo experimental utilizando biocombustível. Produzido da cana-de-açúcar, o combustível pode reduzir em até 82% a emissão de poluentes.
Agora se faz uma conta, produzindo-se biocombustível a partir de plantas que consomem o próprio dióxido de carbono que os jatos emitem durante os voos chega-se num resultado zero. Isto é, as plantas normalmente absorvem gás carbônico, então grandes plantações que visem à produção de combustíveis estarão coletando tanto gás carbônico quanto o emitido pelas aeronaves que queimam aquele produto. Conta zero, neutra, portanto. Viável e desejável, portanto.
Contudo, ainda passará muito tempo antes que uma parte importante do transporte aéreo passe a usar combustíveis “sem culpa”, feitos de óleo de babaçu ou de cana de açúcar. Enquanto isso, continuará a degradação da atmosfera, causada pelo que o homem acredita ser uma necessidade vital: voar para todos os cantos do Planeta. Uma alternativa possível para esse mal que as viagens aéreas causam seria diminuir o número de voos. Considerando que agora vivemos numa aldeia global como nunca antes aconteceu; graças a internet e os novos meios de comunicação instantânea podemos “visitar” qualquer canto do Planeta em tempo real, por que não incrementarmos mais essas interações e viajarmos menos? Será que todo mundo precisa voar tanto? Por que continuarmos com essa degradação lamentável, mas evitável?
Tal degradação será vista como um dos mais chocantes exemplos de desprezo do Homo sapiens pelo planetinha azul que tão bem o acolhe desde muitos milhares de anos. Espero não viver num Planeta que um dia dará uma resposta a altura para a humanidade que não valoriza o que tem. JAIR, Floripa, 22/06/12. 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Jeans


Milhares de anos depois que o asteróide tiver atingido o Planeta, extinguido toda a humanidade e destruído suas conquistas e realizações, é razoável supor que se astronautas de civilização alienígena por aqui chegarem vão se deparar com muitos indícios dos animais bípedes que dominaram a Terra por milhões de anos. Claro que seres que se propõem viajar por distâncias astronômicas por longo tempo pelo espaço ignoto, deverão ter aguçada curiosidade científica que os compulse a práticas arqueológicas quando aqui chegarem. Um Planeta habitável destituído de vida inteligente deverá ser um prato cheio para suas pesquisas.
Fazendo levantamentos com equipamentos de avançadíssima tecnologia poderão inferir milhões de informações sobre a nossa civilização extinta. Poderão verificar que se tratava de uma raça única de primatas que desenvolveram a capacidade de se comunicar oralmente, que inventaram a escrita e criaram tecnologias eletrônicas de certo destaque, que possuíam também habilidades manuais desenvolvidas que os distanciaram culturalmente de seus primos chimpanzés e gorilas. Deduziriam que se tratava de bípedes dotados de inteligência apreciável, inquietos, nômades que haviam se distribuído por todas as massas térreas do Planeta, até as mais inóspitas como o Ártico e os desertos.  Por outro lado, ficaria evidente que esses primatas apresentariam milhares de variações em suas conquistas, escolhas, invenções e modus vivendi, embora se tratasse de animais da mesma raça que cruzavam entre si sem impedimentos genéticos. Verificariam que haveria níveis de consumo (sinais de riqueza) muito variáveis demonstrando que, embora fossem da mesma raça de certa espécie, alguns prosperavam outros não, e isso seria muito estranho para os alienígenas que não incluíam classes sociais em sua cultura.
Os visitantes alimentariam seus supercomputadores com os dados coletados e ficariam surpresos com a quantidade fantástica de artefatos, objetos e elementos criados para dar suporte a essa civilização que havia sumido para sempre. Contudo, a maior surpresa estaria reservada não à multiplicidade de coisas encontradas, mas sim aquilo que era comum a quase todos os humanos, quer vivessem no Himalaia, nas Ilhas Faroe, na Antártida, no Saara, na Amazônia ou em Tóquio; fossem homens, mulheres ou jovens, todos usavam ou teriam usado um objeto simples durável em forma de calças: jeans. Restos de tecidos de brim com costuras duplas reforçadas, de certa espessura e cor, fechos éclair e ilhoses de metal indicariam que, independente de classe social, região na qual viviam, clima, altitude e grau de sofisticação de suas existências, o uso de jeans era algo que poderia ser interpretado como praticamente obrigatório.
Visto isso, os antropólogos ao serem obrigados a classificar essas descobertas, teriam que colocar a civilização Homo sapiens em alguma ordem, família, tipagem ou espécie, com já faziam com suas descobertas em outros planetas. Então, assim como os cientistas humanos fazem ao se deparar com objetos ou costumes recidivos a uma etnia, um povo ou uma cultura desconhecida, depois de analisar os dados, concluiriam que: haviam descoberto a civilização dos jeans.
Nenhum item de vestuário, talvez de qualquer outro uso, coletivo ou individual, é mais universal, mais versátil ou mais aceito e disseminado do que os jeans, roupa inventada em 1873 por Jacob Davis e Levi Strauss para uso de trabalhadores braçais das minas de carvão. JAIR, Floripa, 20/06/12. 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Burocracia


William L. Shirer, no livro “A queda da França”, no qual ele mostra com minudências os motivos que levaram a França cair frente à invasão de Hitler em 1940, faz uma análise profunda de como os Estado francês se comportava no entre guerras. Shirer, historiador fecundo e testemunha presencial do status francês, consegue passar ao leitor com grande acurácia como a máquina estatal francesa e os funcionários públicos conduziam a organização interna das repartições responsáveis pelos serviços estatais, prestados tanto aos cidadãos como às empresas privadas e outros órgãos.
A burocracia francesa era algo pesado e cheio de caminhos tortuosos, antiquados, irredutíveis e onipresentes, mas extremamente séria e eficaz. Mostra Shirer que a burocracia estava a serviço do Estado e do cidadão e não do governo, qualquer que fosse; estava seriamente comprometida com resultados e com a normatização dos trâmites de tal modo que era impossível que um administrador (presidente, primeiro ministro ou outra autoridade de primeiro escalão) de maus bofes conseguisse desviar os objetivos aprovados por uma administração anterior, por exemplo. A burocracia seguia os planejamentos traçados e o Estado estava sempre em funcionamento “faça sol ou faça chuva”, isto é, independente de ideologias ou desvios na condução das políticas internas. Um orçamento aprovado para uma determinada obra (construções de aviões de guerra, por exemplo) não era desviado de sua destinação e não se exauria em desvãos de órgãos públicos.
O historiador demonstra cabalmente que a máquina militar francesa estava azeitada e pronta para o combate quando da invasão nazista, o que tornou a vitória alemã possível e até inevitável foi a falta de crença e de motivação dos militares franceses na vitória.
Pois bem, no Brasil atual burocracia é quase um palavrão, o cidadão comum quase sempre culpa a “burocracia” (aspas pejorativas neste caso) em tudo que não lhe é favorável quando tem que tratar assuntos que envolvem órgãos estatais. A maioria dos cidadãos comuns acha que burocracia são normas criadas para controle, mas que na prática acabam interferindo na agilidade dos processos porque criam certas restrições e procedimentos incabíveis e anômalos. Na verdade o que toca o cidadão são as necessidades de carimbos, de assinaturas, de aprovação de alguém que nem sempre está presente, de liberação do chefe do setor e aprovação da diretoria. Precisamos estabelecer o que é essa tal burocracia e para que serve.
Até os anos trinta, antes da revolução que levou Vargas ao poder, não existia burocracia no país. Isso significava que não havia normas, não havia diretrizes, não havia regras, nada orientava o cidadão ou a empresa que queria regularizar uma situação qualquer. Aos órgãos públicos, ministérios, autarquias e empresas públicas, não eram atribuídas funções específicas que determinavam o que cada um devia fazer para a máquina estatal funcionar, as funções se sobrepunham, misturavam ou inexistiam, era o caos que fazia do Estado regulador, legislador e executivo uma entidade fictícia. De forma que certidões, atestados, certificados, declarações, ofícios e papéis necessários ao trâmite da vida empresarial ou pessoal não estavam definidos nem na forma nem no conteúdo, muito menos na responsabilidade de qual órgão devia emiti-lo e qual o processo a ser usado. Por exemplo, quem emitia um passaporte? Como era a forma e conteúdo de uma certidão de nascimento? Qual a validade de um certificado de conclusão de curso? Como seriam as escrituras de imóveis? Uma cédula de identidade emitida em um estado da Federação valia em outro estado? Como os órgãos públicos deviam receber os documentos para validação de um ato cível? Quais eram os órgãos que deviam ser procurados no caso de emplacamento de veículos? Quais órgãos resguardavam o cumprimento das leis? Até onde ia a obrigação e responsabilidade de cada órgão público? Pois é, no Brasil varonil daqueles anos, não havia respostas simples para a maioria dessas perguntas e para muitas outras que surgissem em função das atividades corriqueiras do dia-a-dia.
Foi a partir da vontade política do ditador Vargas que nos anos 30 o Estado passou a intervir na economia, na organização da sociedade civil e recriou a máquina estatal, além de centralizar o poder, transformando-se numa administração burocrática – e aqui burocrática nada tinha de pejorativo. O Estado tornou-se o principal interventor no setor produtivo de bens e serviços do país, tornou-se um estado normativo dos trâmites civis.
O governo, travestido de zelador das normas estatais, instituiu atividades para autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, bem como normatizou tudo aquilo que o cidadão e as empresas não sabiam ou não tinham como saber como funcionava. Por exemplo, as certidões de nascimento passaram a ter cartórios responsáveis pela sua emissão; passaram a ter uma forma e um conteúdo definidos; tiveram sua validade estendida a todo território nacional, coisa que anteriormente não existia. As empresas passaram a conhecer e ter acesso aos documentos necessários e indispensáveis ao seu funcionamento. A ABNT só seria criada em 1940, mas as normas já existiam então.
Podemos afirmar sem falar necedade que o processo de formação e desenvolvimento do Estado brasileiro teve começo ainda no período colonial, onde existia uma relação tutelar entre o Estado comanditário e os empresários. Entretanto, nos anos 30 que se dá o nascimento do Estado Burocrático, fortemente centralizador e intervencionista e, ao mesmo tempo, de uma classe empresarial altamente dependente de autorizações, proteções e favores oficiais. E daí podemos tomar a liberdade de inferir que essa burocracia estatal cresceu tanto que comeu o dono, isto é, a burocracia criou mais burocracia, de forma que as normas, regulamentos e papéis tornaram-se mais importantes que o fim a que se destinavam. Vou dar um exemplo pessoal. Estacionei o carro em vaga para idosos numa via pública e o guarda me multou na hora. Mostrei meus documentos provando que era idoso, mas alegação do guarda é que eu não possuía uma identificação emitida pela Prefeitura, a qual eu devia dar entrada no pedido, acompanhado de fotografia e atestado de residência. Neste caso o importante era o papel (burocracia) e não o status e a condição do contribuinte, ou seja, se você tem um papel emitido por um órgão público, você é idoso, do contrário não importa sua aparência e até sua identidade. Esta exigência vale também para deficientes, não basta ser e usar cadeira e rodas, por exemplo, tem que provar através de papel assinado por autoridade. 
Então, embora a burocracia fosse criada para azeitar a relação do estado com o cidadão, a burocracia do estado brasileiro é um arremedo do que deveria ser, tornou-se um monstro multifacetado e voraz que se alimenta tanto de papéis e carimbos como da alma do povo, e ainda custa bilhões para os cofres públicos. Tenho dito. JAIR, Floripa, 16/06/12. 

domingo, 17 de junho de 2012

O Canal


Depois que a megalomania da França, capitaneada pelo engenheiro Ferdinand De Lesseps, foi derrotada pela selva tropical, a falta de experiência e um fatal erro de projeto, na construção de um canal que unisse dois oceanos no istmo do Panamá (que fazia parte da Colômbia), quem assumiu a companhia francesa falida e o compromisso da construção foi o governo dos EUA. Como primeiro ato dessa nova etapa histórica, Roosevelt não hesitou em apoiar forças rebeldes colombianas que contestavam o poder de Bogotá, que era muito distante e lhes faltava com qualquer tipo de apoio. Resultado, fundou-se em três de novembro de 1903, um novo país com nome de Panamá, o qual já nasceu estigmatizado como protetorado americano. De imediato, os EUA conseguiram uma concessão de terras que englobava a parte mais estreita do istmo onde já existia uma ferrovia de empresários americanos e onde a França havia enterrado milhões de francos, deixando cicatrizes na terra e imensas clareiras na selva demarcada onde passaria o canal.
Theodore Roosevelt, presidente ousado e autoritário, convenceu o Congresso em aprovar a fundação da Companhia do Canal que seria encarregada de administrar a recém inaugurada Zona do Canal, e construir a ligação aquática entre os oceanos. Os pragmáticos americanos, embora escorados no dinheiro verde abundante que o Congresso aprovou, sabiam que o empreendimento era “coisa de gente grande”, mas não se intimidaram, em 1904 iniciaram de imediato a contratação de engenheiros especializados em grandes construções.
Milhares de trabalhadores especializados oriundos da construção de ferrovias que se faziam no país foram atraídos por promessas de bons salários, mas, sobretudo, foram convencidos que se tratava de um empreendimento patriótico indispensável para integração do vasto território americano. De certa forma, era uma verdade incontestável que o transporte de grande porte entre as costas do país e a defesa de seus litorais antípodas por uma marinha que começava a tornar-se onipresente, seriam facilitados com a construção do canal.
Chegadas as primeiras equipes no porto de Cólon no Atlântico, tiveram elas um impacto negativo com as condições que encontraram numa terra de selva tropical, nenhuma estrada a não ser ferrovia que ligava Cólon à cidade do Panamá no Pacífico, muitas doenças, muitos insetos e répteis perigosos e nada mais. Contudo, máquinas e instalações como hospitais, hotéis, barracões, casas e alojamentos para empregados foi uma espécie de bônus que os franceses deixaram para os novos construtores aventureiros. Os administradores da ferrovia, agora sob o comando do governador da Zona do Canal e do chefe da construção, deram o apoio necessário e essencial para o início do trabalho. Como eu disse, existia muito material deixado pelos franceses, o primeiro passo seria fazer um levantamento minucioso do que estava disponível e poderia ser utilizado e o que era mera sucata. Daí, pedidos de material e gente se fazia necessário para que as obras iniciadas pelos franceses pudessem ser continuadas. Tudo bem, só que a falta de experiência dos gringos não lhes alertou para o problema maior que os engenheiros de Lesseps tinham criado. Na concepção dos franceses era possível e desejável por ser tecnicamente mais simples, construir um canal ao nível do mar. Só que esse projeto era extremamente complicado para não dizer inviável, na região existiam muitos rios, inclusive o caudaloso Chagres, cujos leitos corriam a doze metros ou mais acima do nível do mar.
Mesmo assim, os heróicos e ingênuos engenheiros colocaram a mão na massa para cortar o maciço de Culebra, divisor de águas continental que é a continuação dos Andes. Para se ter uma ideia, o corte dessa elevação teria que ter mais de quatorze quilômetros de extensão com profundidade de 120 metros e paredes laterais de inclinação pouco acentuada para evitar deslizamentos de um terreno instável como aquele, de forma que no topo do corte a largura era de cinco mil e quatrocentos metros.
Para formar o quadro de trabalhadores não especializados começaram a recrutar homens do Panamá e do Caribe, dando preferência as populações da Jamaica e Tobago por causa da língua inglesa, no entanto, no auge do trabalho em 1907, existia mais de 53 mil operários de 27 nacionalidades se comunicando numa babel de idiomas, entre eles grego, mandarim, japonês e polaco. Os trabalhadores americanos brancos, replicando as condições de sua pátria, ganhavam o dobro dos “não brancos” e recebiam em moedas de dólar ouro, os demais recebiam em moedas de prata (Balboa) do Panamá. A sociedade do Canal era estratificada, brancos e não brancos só podiam ser encontrados juntos no trabalho, nos demais lugares como escolas, salões de festas, bares, armazéns, clubes, hospitais, bibliotecas, times de rúgbi e basebol, cada um no seu quadrado. Sendo que os brancos tinham suas atividades extra trabalho custeadas pelo governo, os demais, apesar de ganharem menos, eles próprios tinham que se virar. E dois grandes problemas que a Companhia do Canal teve que administrar foi a rotatividade de pessoal, algo em torno de 80% por ano em alguns casos; e mortalidade por doenças e acidentes que ceifou a vida de mais 25 mil operários.
Como os trabalhos estavam sempre fora do cronograma devido a deslizamentos e inundações durantes as chuvas, os diretores começaram a desconfiar que algo estava errado. Depois que uma comissão de nível internacional nomeada pelo presidente Roosevelt inspecionou as obras e emitiu um relatório desfavorável, é que se deram conta que um canal ao nível do mar era simplesmente inviável, optou-se por um canal de desnível com comportas. Resolveu-se então represar o rio Chagres próximo a sua foz no Atlântico, formal um grande lago navegável que seria ligado ao Pacífico através de outras comportas. Heureca! Agora o trabalho tinha outro objetivo, construir uma imensa represa que passou a se chamar Gatún, no rio Chagres e outra menor, Miraflores, próxima ao Pacífico. Claro que a construção das represas e comportas demandou imensa mão de obra e emprego de máquinas como nunca se tinha visto, mas de 1908 até 1914 eles o conseguiram, o empreendimento ficou pronto ao custo de 400 milhões de dólares, mas Roosevelt que era o “pai do canal” já não era mais presidente, fora substituído por Woodrow Wilson em 1912.
Agora, nesta quadra da história em que os navios se tornaram colossais, o canal tornou-se subdimensionado de modo que está sofrendo um upgrade o que o tornará capaz de operar por muitos  anos ainda. JAIR, Floripa, 16/06/12. 

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Inferno


Vez ou outra as mídias abrem espaço para mostrar a Coreia do Norte e suas excentricidades, incúrias e aberrações, seja porque os militares norte-coreanos bombardearam uma pequena ilha da Coreia do Sul matando civis, ou porque torpedearam um navio no mar Amarelo matando todos os tripulantes e passageiros. No dia 17 de dezembro de 2011 ocorreu a morte do líder norte-coreano Kim Jong-il, o qual herdara a liderança do país de seu pai, Kim Il-sung, estabelecendo uma estranha dinastia que se diz “militar-partidária-comunista”, nessa ordem. Agora quem comanda a máquina de opressão àquele povo é o filho mais novo de Jong-il, Kim Jong-un, o qual, dizem, estudou ma Universidade de Princeton, mas é tão ou mais cruel e elitista que seu pai.
Pois é, embora o estranho regime desse país seja um dos mais fechados e despóticos do mundo, graças as suas fronteiras, ao norte com a China e ao sul com a outra Coréia, algumas informações têm saído para o exterior através dos desertores que conseguem vazar para esses vizinhos. A partir da década de noventa do século passado houve uma terrível crise de fome em consequência da centralização absoluta da agricultura que não conseguiu superar a falta de fertilizantes depois que a Rússia deixou de fornecê-los. Daí, meio que para contornar a fome que matava centenas de pessoas por dia, o regime começou a fazer vistas grossas quando milhares de desempregados, sem quaisquer perspectivas, cruzavam a fronteira rumo à China numa região que é, desde o término da guerra em 1953, habitada por coreanos deslocados. Embora as regiões agrícolas da China sejam paupérrimas em contraste com as cidades grandes como Beijing, por exemplo, para os coreanos é muito melhor trabalhar como escravos para aqueles agricultores em troca de comida, do que morrer de fome na Coreia do Norte.
Desde 1990, a Coreia do Norte tem sido incapaz de cultivar ou distribuir alimentos em quantidade suficiente para suprir as necessidades de sua população. Em meados da década de 1990 a fome matou mais de um milhão de norte-coreanos. Esse desastre só foi aliviado quando o fechado governo concordou em aceitar auxílio internacional. Num estranho contorcionismo ideológico, os EUA continuaram a ser o “demônio” que quer o fim de todos os norte-coreanos, ao mesmo tempo que se tornaram o maior doador de alimentos, equipamentos agrícolas, fertilizantes, combustíveis (o país não produz petróleo) e remédios. Por outro lado, mesmo que tecnicamente a guerra com a Coreia do Sul não tenha terminado ainda, pois o que há entre os dois países é apenas um cessar fogo, esta se tornou o grande esteio sobre o qual se apóia a Coreia do Norte para não naufragar de vez na fome total, aquele país, desde a década de noventa, envia centenas de milhares de toneladas de alimento aos famintos norte-coreanos.
A Coreia do Norte precisa produzir mais de cinco milhões de toneladas de cereais por ano para alimentar seus mais de 23 milhões de habitantes, mas, todos os anos tem déficit em torno de dois milhões de toneladas. Durante o regime comunista na URRS, o déficit produtivo da Coreia era compensado pelas maciças importações a preços subsidiados, depois que a cortina de ferro se rompeu, os subsídios cessaram e a economia centralizada do país desmoronou.
Em 2008, quando uma nova liderança em Seul cortou a ajuda que fazia à Coreia do Norte, em forma de fertilizantes gratuitos, o regime tentou fazer em regime nacional o que vinha fazendo a décadas nos campos de trabalhos forçados. Os cidadãos foram instruídos a fabricar toibee, um fertilizante a base de cinzas misturadas com excremento humano, ou seja, merda e cinza passou a ser a redenção nacional. Nos últimos anos, merda foi recolhida de banheiros públicos em cidade e vilas de todo o país. Fábricas, empresas públicas e bairros inteiros receberam ordens de recolher os dejetos e produzir duas toneladas de toibee por mês, segundo uma organização filantrópica budista que tem informantes clandestinos no país. Mas esses fertilizantes não atendiam e não atendem nem em quantidade nem em qualidade as necessidades da agricultura, de forma que a fome continua e até se agrava em certas regiões.
Na primavera de 2010, quando a escassez de comida voltou a se tornar mais severa ainda, o governo tentou convencer os citadinos a voltar ao campo e se dedicar a agricultura. Claro que, cidadãos não afeitos as lidas do campo não estavam habilitados a promover uma “revolução verde” como queria o regime, o plano tem sido um fracasso total e a fome se agrava.
No momento, 2012, dezenas de milhares de norte-coreanos se dirigem a fronteira da China onde pretendem trabalhar até conseguir algum dinheiro para migrar para a Coreia do Sul onde, segundo uma lei aprovada em 1953, receberão certificados de cidadãos e terão todos os direitos dos nativos. Não esquecendo que a economia da Coreia do Sul é 32 vezes maior que de sua congênere que professa um regime “militar-partidário-comunista”, que gasta mais de 5% de seu PIB em despesas militares, se empenha em possuir armas nucleares, mas tem um dos índices de desenvolvimento mais baixos do Planeta, sem contar que é um povo triste e depressivo que só ri ou chora sob comando do regime.
Além do mais, o regime faz lavagem cerebral nos cidadãos convencendo-os que vivem no melhor país do mundo, uma espécie de paraíso na Terra. Paraíso que mantém campos de prisioneiros há mais de cinquenta anos, onde os supostos inimigos do ditador de plantão são internados por toda a vida sem qualquer chance de um dia sair, onde os filhos dos prisioneiros nascidos nos campos são automaticamente inimigos da aristocracia que manda no país e também jamais saem detrás de suas cercas eletrificadas. JAIR, Floripa, 14/06/12.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Inventando um país


Depois da conclusão do canal Suez por Ferdinand De Lesseps em 1869, a França colonialista era uma potência incontestável na Europa e no mundo e, movida pelo espírito de conquistas tecnológicas despertado pela revolução industrial, achava que o céu era o limite, nada era grande demais ou difícil demais para ser conquistado ou ser construído. A Exposição Universal realizada em Paris que acontecera em 1878, era uma prova de que o umbigo do mundo, não só artístico, mas também técnico, era a apropriadamente chamada Cidade Luz. A Torre Eiffel projetada e construída pelo engenheiro francês Gustave Eiffel erguia-se sobre a cidade como um dedo apontando a abóbada celeste para atestar que aquele era o limite para a engenhosidade e operosidade dos franceses. Quem subia ao topo da Torre sentia o mundo pequeno e submisso lá embaixo, era a estrutura construída pelo homem mais alta do Planeta.
Na primeira metade do século dezenove os EUA ainda não haviam despontado como a potência militar e econômica que conhecemos a partir do século vinte. Sua costa leste estava separada da costa oeste por regiões selvagens semidesérticas, sem estradas, rios ou caminhos que permitissem uma comunicação razoável entre elas. O transporte marítimo entre as costas se fazia contornando a América do Sul pelo cabo Horn, um percurso longo demais, caro demais e perigoso demais. Espíritos empreendedores sonhavam com um caminho mais curto que se fizesse pelo sul México ou pelo istmo conhecido como América Central, mas uma tão sonhada passagem oculta que ligasse o Pacífico ao Atlântico naquela região era apenas isso: um sonho. A parte mais estreita do istmo (pertencente à Colômbia) já havia sido explorada e nada parecido com uma passagem foi encontrado, pelo contrário, havia uma continuação da “espinha dorsal” da América do Sul, os Andes, que atravessava a região e continuava pela costa Oeste até se fundir com as Montanhas Rochosas na América do Norte.
Dada a imensa dificuldade que o desenvolvido leste dos EUA tinha para contatar o “Far West” (Oeste longínquo), alguns empresários sonhavam com uma oportunidade de ganhar muito dinheiro encurtando a distância entre as regiões. Para complicar as coisas, em 1848, descobriu-se ouro na Califórnia, estado situado na costa oeste. Milhares de aventureiros, trabalhadores e garimpeiros do leste do país saíram em disparada na chamada “corrida do ouro” que os levou até o istmo da América Central onde pagavam até cem dólares para atravessar para a cidade do Panamá, depois tomariam embarcação para a Califórnia. Guias colombianos espertos enriqueciam com esse transporte.
Então, diante desse quadro, alguns anos depois, caciques industriais endinheirados e influentes de Nova Iorque deslocaram-se para Bogotá e fizeram lobby, a custa de muitos dólares, junto ao governo do país e descolaram uma concessão que lhes permitia explorar uma linha férrea a ser construída entre o Atlântico e o Pacífico naquela província chamada Panamá, na parte mais estreita do istmo. No leste, voltado para o Caribe, existia um porto natural de nome Cólon, e do lado do Pacífico ficava a cidade do Panamá, que não passava de uma vila de choupanas de pau a pique cobertas de folhas de palmeira onde imperava a malária e a febre amarela.
Ao custo de alguns milhões dólares e milhares de vidas, os empresários conseguiram vencer a selva e os obstáculos como rios, pântanos e montanhas e construíram a estrada. Inicialmente estimou-se que em seis anos seria recuperado o capital empregado, mas ao cabo de dezoito meses e ao preço de 25 dólares por cabeça (preço altíssimo para a época), mais da metade do investimento já se encontrava saldado. Era uma mina de ouro melhor do que as que se foram encontradas na costa oeste.
Como eu disse, em 1878 os franceses estavam “se achando” e, segundo se julgavam, não existia nada que não pudessem fazer – e bem feito. Foi aí que o senhor Ferdinand De Lesseps, cheio de “sou mais eu”, declarou que era possível fazer um canal que cortasse o istmo da América Central na sua parte mais estreita. Depois de ingerências diplomáticas em que usou até ameaça de que os EUA estavam dispostos a intervir na região e desanexá-la da Colômbia, como haviam feito com o Texas e partes da Califórnia depois da guerra com México, conseguiu a concessão para a construção de um canal entre Cólon e cidade do Panamá. Fortíssima campanha junto aos franceses ricos e pobres em que o próprio De Lesseps era o garoto propaganda, conseguiu arrebanhar algo em torno de novecentos milhões de francos vendendo ações da Compagnie du Canal Interocéanique. Desse modo o empreendimento era todo privado.
Os trabalhos começaram em 1880 e, desde logo, ficou claro que os engenheiros franceses tinham subestimado as dificuldades de construir na selva tropical, dificuldades agravadas pela falta de experiência e pelas doenças como malária e febre amarela que eram epidêmicas na região. Milhões de francos eram enterrados pela lama que teimava em escorrer pelos cortes nos morros e soterravam máquinas e equipamentos durantes as chuvas. No auge dos trabalhos dezenas de peões morriam de doenças tropicais, de acidentes e de conflitos entre colombianos e jamaicanos que não morriam de amores uns pelos outros. Mas o maior erro dos franceses foi julgar que era possível construir ao “nível do mar”, isto é, simplesmente rasgar o istmo de um lado ao outro, através dos morros, pântanos e rios de forma a ligar um oceano ao outro sem considerar que o caudaloso e imprevisível rio Chagres, por exemplo, ficava a doze metros acima do nível do mar. Para construir um canal assim, sem comportas, era necessário “domar” o Chagres com imensas barreiras de contenção como represas que o impedissem de invadir o canal nos tempo de enchentes. Assim o empreendimento estava fadado ao insucesso, e foi o aconteceu. Em 1892 a Compagnie faliu e deixou milhares de acionistas com o mico preto na mão, estava soterrado na selva úmida e saturada de insetos, o sonho de Lesseps e dos franceses mesmerizados por seu carisma.
Foi aí que um dos sócios da empresa, Philippe Bunau-Varilla, engenheiro e lobista fantástico conseguiu convencer o presidente americano, Theodore Roosevelt, a comprar a empresa falida e dar continuidade ao canal. Depois de levar ao debate do Congresso a proposta do francês, o presidente logrou conseguir os quarenta milhões de dólares necessários à compra, agora só faltava convencer a Colômbia sobre a necessidade do canal e que não haveria intervenção americana no país.
As coisas não saíram como previsto pelos americanos, o congresso colombiano não aprovou a concessão a não ser que os gringos entrassem com uma soma de outros quarenta milhões de dólares. Assim ficaria mais barato construir um canal na Nicarágua, onde já existia um estudo de viabilidade. Mas Roosevelt queria o canal na Colômbia, que fazer?
Como existia certa insatisfação na região do istmo com relação a Bogotá que era muito longe e pouca assistência prestava aos habitantes dalí, em 1899 houve uma rebelião que envolveu tropas locais contra tropas vindas de Bogotá. Morreu muita gente, mas a insatisfação só aumentou. Roosevelt deslocou tropas de fuzileiros para lá com a manifesta intenção de proteger os bens e os americanos que operavam a ferrovia, mas no fundo era uma ocupação branca. Não demorou muito para que os rebeldes proclamassem sua independência e fundassem o Panamá, país que nasceu com um “padrinho” poderoso que virtualmente tornou a nova nação um protetorado, como já o fizera com Porto Rico e Filipinas. O Novo país, inventado pelos americanos, assinou um tratado com os EUA que cedia por cem anos a “Zona do Canal” onde os americanos construíram e passaram a administrar o canal, só que esse é um assunto que vou abordar em outro texto. JAIR, Floripa, 04/06/12. 

domingo, 10 de junho de 2012

O canhão


A chamada guerra fria, que era um arreganhar de dentes entre o ocidente democrático (EUA) e o oriente comunista (URSS), requeria de ambos os contendores vigilância constante e demonstrações aparatosas de poder bélico visando impressionar o oponente. Nós, expectadores compulsórios, quase sempre com taquicardia, éramos vítimas de notícias de novas ameaças e de novas armas desenvolvidas especialmente para aniquilar uma conquista tecnológica do outro lado. Assim, bombas “A” cada vez maiores e mais potentes eram “testadas” no atol de Biquíni no Pacífico pelos EUA, e artefatos semelhantes detonados no deserto do Kazaquistão pelos russos. Lembrando que a bomba “A” detonada em Hiroxima tinha uma potência equivalente a 20 quilotons (vinte mil toneladas de TNT), as bombas de ambos os lados na década de cinquenta andavam na casa dos megatons (milhão de toneladas de TNT). Sempre que os soviéticos anunciavam uma bomba especialmente potente, os americanos respondiam com uma maior, e a recíproca era verdadeira. Parecia que aquela disputa ia acabar com a humanidade por um mero acidente quando alguém meio destrambelhado apertasse um botão numa má hora.
Aviões, submarinos e belonaves de superfície cruzavam céus e mares 24 horas por dia armados com as tais bombas do fim do mundo, não havia limite para a potência dos artefatos, nem dos meios empregados para transportá-los da forma mais ameaçadora possível. Não bastava tê-las nos respectivos arsenais, havia necessidade de intimidar a outra parte com o que se convencionou chamar de “bombardeio estratégico”. Estratégia: (Houaiss) arte de coordenar a ação das forças militares, políticas, econômicas e morais implicadas na condução de um conflito ou na preparação da defesa de uma nação ou comunidade de nações. Foi aí que os senhores da guerra americanos resolveram ampliar a ameaça criando uma arma nuclear tática. Lembrando que tática é: (Houaiss) arte de dispor e manobrar as tropas no campo de batalha para conseguir o máximo de eficácia durante um combate.
Diante dessa nova visão de intimidação, o arsenal Picatinny foi encarregado de criar uma peça de artilharia capaz de lançar uma bomba nuclear tática. O engenheiro militar Robert Schwartz, criou os primeiros desenhos de tal arma baseados no canhão 240 milímetros (então o maior do arsenal dos EUA) e usou o sistema alemão desenvolvido para transportar o canhão K5, (descomunal canhão alemão que foi utilizado contra a França na segunda guerra) como ponto de partida para o transporte.
O projeto foi aprovado pelo Pentágono, em grande parte através da intervenção de Samuel Feltman, engenheiro civil que trabalhava para o exército americano no desenvolvimento de novas armas. Um esforço concentrado de três anos de trabalho foi iniciado. O projeto passou com rapidez suficiente para produzir um modelo de demonstração para participar do desfile em homenagem ao presidente Eisenhower em janeiro de 1953 quando da assunção ao seu primeiro mandato.
O canhão era transportado por dois conjuntos de esteiras especialmente concebidos, capazes de direção independente. Cada um dos conjuntos tinha 375 cv de potência nos motores, e podia atingir velocidades de 35 quilômetros por hora e possuía habilidade de manobra para fazer curvas com 28 metros de raio, em estradas pavimentadas ou terrenos não preparados. Pode parecer que curvas com esse raio sejam muito grandes, mas é bom lembrar que a arma era imensa e pesadona, tinha quase trinta metros de comprimento e pesava 84 toneladas, calibre 280 milímetros, tinha um alcance de 30 quilômetros e foi batizada de M65. A peça de artilharia poderia ser liberada para uso em 15 minutos e, depois dos disparos, voltar a deslocar-se em outros 15 minutos. A intenção era baseá-la na Europa onde pudesse ser utilizada contra tropas soviéticas ao longo das fronteiras da guerra fria. Não ficou registrado a reação dos russos sob essa nova ameaça.
Em 25 de maio de 1953 às 8:30 horas da manhã no estado de Nevada, o canhão atômico foi testado, como primeira parte de uma série de testes nucleares programados. O teste de codinome Grable - contou com a presença, do secretário de defesa Charles Erwin Wilson - e resultou na detonação com sucesso de um projétil contendo uma bomba “A” de quinze quilotons. Este foi o primeiro artefato nuclear a ser disparado de um canhão.
Após o teste bem sucedido, houve pelo menos 20 outros canhões fabricados a um custo de 800.000 dólares cada. Eles foram destacados no exterior para a Europa e Coréia, eram muitas vezes continuamente deslocados para evitar serem detectados e servirem de alvo para as forças oponentes. Devido ao tamanho do aparelho; a sua gama de utilização um tanto limitada; o desenvolvimento de projéteis nucleares compatíveis com peças de artilharia de 155 e 203 milímetros já existentes; e o desenvolvimento de mísseis nucleares terra-terra, o M65 tornou-se obsoleto logo depois que foi implantado. No entanto, até 1963 manteve-se como arma de prestígio sem sequer ter um plano de utilização em caso de conflito, acreditava-se que sua presença era suficiente para amedrontar os soviéticos e seus aliados.
Dos vinte canhões produzidos hoje existem oito deles em exposições em museus. O que se deduz dessa tecnologia é que a imaginação do homem não tem limites quando se trata de produzir morte nos seus semelhantes. JAIR, Floripa, 23/03/12. 

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Sobre Mao


Já publiquei textos referentes ao desgoverno de Mao Tse-tung, o qual foi mandatário mor da China entre 1949 e 1976, ano de sua morte. Apesar de lembrar as monstruosidades que o líder comunista cometeu contra seu próprio povo para alcançar e se manter no poder, descalabros que custaram a vida de 70 milhões de chineses, me ative apenas à moldura tétrica da vida privada de um homem que sob quaisquer aspectos individuais não era um exemplo de ser humano ou cidadão a ser seguido. Mau marido, péssimo comandante de tropas, extremamente mordômico, covarde, lascivo, egocêntrico, desprovido de compaixão ou sentimentos para com o próximo, traidor de amigos, companheiros de partido e das esposas (teve quatro ao longo da vida), não tomou banho por mais de vinte anos e nunca escovou os dentes.
Durante os anos trinta e quarenta do século passado, Mao já filiado ao PC chinês e, junto com outros camaradas, formou tropas para instituir uma revolução comunista na China que se encontrava semi invadida pelos japoneses e semi governada pelo general Chang Kai-shek. A fim de tornar-se comandante das tropas, seguidamente traia seus pares induzindo-os a entrarem em combate contra tropas nacionalistas melhores armadas, bem posicionadas e bem treinadas para que fossem massacrados. Diante dos fiascos anunciados, Mao mandava executar os comandantes e assumia o comando. Covarde como era, jamais entrou em combate ou compareceu aos campos de batalhas. Sua ascensão custou centenas de milhares de vidas, mas isso nunca lhe causou qualquer arrependimento ou remorso.
Casou-se pela segunda vez durante essa época de lutas, mas sua esposa, embora lhe tenha dado dois filhos, um dos quais com problemas mentais, foi morta por tropas nacionalistas quando estas invadiram a aldeia na qual vivia. Mao encontrava-se nas proximidades comandando tropas cinco vezes mais numerosas que as invasoras, mas não fez qualquer gesto para salvar sua esposa, deixou-a ser morta depois de torturas horríveis mesmo sendo informado por seus espiões que isso ia ocorrer.
Durante a “Longa Marcha”, empreendida em 1934 com 80 mil homens que fugiam das tropas de Chiang Kai-shek, Mao se fez conduzir em liteira levada por ombros de quatro homens em condições terríveis. Sua natureza mordômica fez com que só pernoitasse em mansões arrestadas de chineses ricos que eram expulsos ou mortos a mando de Mao. Os demais componentes do assim chamado “Exército Vermelho” dormiam ao relento, mesmo no rigoroso inverno das montanhas.
Desde essa época, Mao costumava rodear-se de belas garotas as quais tinha por amantes – muitas vezes a força – e as dispensava assim que “enjoava” delas, adquirindo outras em seguida. Esse hábito durou toda sua vida e foi tolerado pelas esposas, pois estas não tinham como contrariá-lo porque corriam o risco de “desaparecer”. Mao cercava-se de homens competentes para “carregar o piano”, mas estes não poderiam fazer sombra a ele. Chou En-lai é dessa época e só conseguiu sobreviver porque era poliglota, articulado e fazia a ligação com os russos os quais forneciam as armas que o Exército Vermelho necessitava.
Depois da subida ao poder em 1949, Mao continuou sua política de terror para manter-se no poder e transformou a China num grande campo de concentração onde as pessoas só tinham direito de trabalhar até a exaustão e morte em nome do comunismo. Os direitos deixaram de existir, não havia constituição e o que valia era o “Livro Vermelho dos Pensamentos de Mao”, uma compilação de frases nas quais ele determinava por parábolas todas as ações da vida de todos. Seus pensamentos, mal comparando, eram a bíblia do povo chinês.
Mao lia muito desde criança, sempre gostou de livros e sua cama era bem larga para acomodar muitos livros os quais estava lendo. Durante a Revolução Cultural comandada por ele a partir de 1966, mandou queimar todos os livros ocidentais ou de autores chineses “não autorizados”. Aproveitou para aumentar sua biblioteca de livros raros, todos roubados por seus Guardas Vermelhos quando seus verdadeiros donos foram presos ou mortos por possuí-los. Mao orgulhava-se dessa biblioteca e fazia questão de receber e ser fotografado ao lado de mandatários estrangeiros em frente às prateleiras abarrotadas de livros roubados.
Durante seu desgoverno mandou construir muitas mansões em vários lugares do país para se hospedar quando viajava. Várias dessas moradias jamais foram usadas, permaneciam fechadas para a eventualidade de que viesse a ocupá-las. As luxuosas construções continham sempre abrigos atômicos e túneis de fuga para o caso de ser necessária uma saída de emergência. Todas continham piscinas aquecidas e eram localizadas em locais aprazíveis onde os camponeses foram expulsos para isolar o Grande Líder.
Como Mao nunca escovou os dentes e mantinha o hábito de fumar desde muito jovem, seus dentes eram enegrecidos, cariados e ele tinha mau hálito, verdadeiro bafo de bueiro, segundo quem o conhecia. Em pouquíssimas fotos aparece sorrindo e, quando isso acontece, os assessores de imagem costumavam disfarçar seus dentes pretejados, mas isso nem sempre era possível de modo que existem fotos que mostram sua dentição horrorosa. Mao deixou de tomar banho em 1949, só permitia ser esfregado com toalhas úmidas por suas camareiras durante o verão. Imagina-se que não tivesse um odor muito atraente.
Apesar da fome que grassava em virtude de suas políticas desastradas quase todo o tempo que foi o “Grande Timoneiro” do país, Mao vivia na fartura e sua comida vinha de certas regiões da China que produziam galinhas, arroz e porco só para ele. Sua comida era exclusiva e não era permitido a ninguém comê-la, a não ser seu provador oficial o qual experimentava os pratos para verificar se não se encontravam envenenados. Mao temia envenenamento por que havia mandado envenenar um de seus acólitos que lhe fazia sombra durante sua ascensão.
Ao fim da vida, quando soube que Chou En-lai estava com câncer na bexiga, impediu que fosse tratado porque queria viver mais que seu êmulo o qual, sob todos os aspectos era melhor que ele, Mao. Mao se sentiu realizado quando em 08 de janeiro de 1976, Chou veio a falecer vítima do câncer não tratado. Em nove de setembro de 1976, Mao Tse-tung morreu. Permaneceu lúcido até o fim e em sua mente havia apenas um pensamento: ele e seu poder. Não deixou herdeiros políticos, testamento ou filhos homens, o mais velho havia morrido na guerra da Coreia e o outro num manicômio na década de cinquenta. JAIR, Floripa, 31/08/11. 

terça-feira, 5 de junho de 2012

Voando por nada


Há mais de quarenta anos em 1971, mês de junho, eu trabalhava no Serviço de Busca e Salvamento da FAB, sediado na Base Aérea Cumbica em Guarulhos – SP. O esquadrão foi designado para deslocar três aviões Albatroz para a Bolívia a fim de empreender busca de aeronave civil que havia desaparecido nas proximidades de Santa Cruz de La Sierra no oriente daquele país.
Lembrando que a Bolívia, ressaltado o fato que não tem litoral, é quase uma réplica da geografia sul-americana, tem a região andina montanhosa, parte da região amazônica no leste e uma nesga da região platina que se estende para a Argentina. O oriente divide-se, uma porção setentrional, atravessada pelos rios Mamoré, Guaporé e Beni que fazem parte da bacia amazônica que, em alguns pontos, se semelha ao pantanal mato-grossense por seus alagadiços. É nessa região que se encontra Santa Cruz de La Sierra e onde, supostamente, uma aeronave da Corporação Minera de Bolivia (COMIBOL) havia desaparecido depois de ter decolado de Cochabamba com dois diretores daquela companhia. Adite-se que os dois passageiros a bordo do bimotor Model 5 Twin Bonanza estavam de posse de oito milhões de dólares pertencentes à COMIBOL oriundos de um pagamento feito por uma mineradora estrangeira, e que esse dinheiro deveria ser depositado num banco em Santa Cruz.
Pois bem, chegamos com três Albatroz no dia 23 de junho de manhã, de acordo com minhas anotações, e começamos imediatamente a fazer as buscas na região amazônica boliviana. Seguindo o que tenho anotado em minha caderneta de voo, ficamos na busca até dia 16 de julho e voamos (soma das horas dos três aviões) em torno de quatrocentas e cinquenta horas na busca. No fim da missão quando toda a área havia sido coberta, ainda que o Bonanza não tenha sido encontrado, embora todos os dias surgissem dicas “quentes” que habitantes de tal ou qual departamento o tinham visto cair em chamas ou explodir no ar, como acontece em quase todos os acidentes aéreos relatados por pessoas que nada sabem de aviação, havíamos avistado oito aviões sinistrados em vários lugares selvagens e remotos da área de florestas permeada de pântanos.
O curioso a respeito dos relatos que fazíamos sobre os avistamentos é que só um ou dois eram de conhecimento das autoridades aeronáuticas do país. Havíamos “encontrado” aeronaves de queda aparentemente recente como um DC-3 quase inteiro em um pântano e um bimotor pequeno destruído não identificado numa campina. Por outro lado, havia três ou quatro aviões caídos há bastante tempo de forma que se tornaram inidentificáveis. Mais curioso de tudo, encontramos uma aeronave visivelmente pousada em uma área pantanosa há muito tempo, ela não apresentava danos aparentes e devia ter sido abandonada pelo aviador que a conduzira até ali. Estava bastante deteriorada pelo tempo, mas ainda se podia ver uma cruz na fuselagem, era um Messerschmitt Bf 109, com as cores da Luftwaffe do tempo da segunda guerra mundial.
É claro que as autoridades juraram desconhecer a existência desse avião e qualquer relação com ele. Mas não é estultice lembrar que Ernst Röhm, chefe das SA nazistas que foi assassinado pela camarilha da cúpula hitleriana em 1934 naquela que foi chamada “noite das facas longas” (30 de junho de 1934), esteve na Bolívia como assessor militar no início dos anos trinta e que deixou representantes militares naquele país até 1943 quando o país declarou guerra à Alemanha, sem, entretanto, enviar tropas à Europa ou apoiar materialmente os aliados. Contudo, há indícios que continuou fornecendo prata (mineral estratégico) aos alemães pelo método de triangulação até o fim da guerra - triangulação é quando um fornecedor finge exportar para comprador que serve apenas de “laranja”, repassando o produto para o consumidor final, este método é muito usado ainda hoje com relação ao petróleo, o Irã (boicotado pelos EUA) finge exportar para algum país do Oriente Médio, mas o produto acaba nos tanques dos automóveis americanos. Então, encontrar um Messerschmitt pousado num pântano boliviano pode não parecer tão estranho assim.
Terminadas as buscas infrutíferas, todos fomos agraciados com condecorações pela Força Aérea Boliviana, voltamos para o Brasil em meados de julho e não se falou mais do assunto. Um belo dia, em 1976, lendo um jornal de São Paulo, encontrei no meio daquelas notícias sem qualquer destaque nas páginas centrais, uma que me chamou atenção. Tratava-se do depoimento de um aviador civil que estava retornando à Bolívia porque tinha saudades da família a qual abandonara compulsoriamente em 1971. Motivo do abandono: o avião que ele pilotava havia sido seqüestrado por dois diretores da COMIBOL, em 1971, que o forçaram a levá-lo para o México via Peru, Colômbia, Venezuela, Panamá e Nicarágua. Dizia ele que depois da decolagem de Cochabamba, os dois passageiros obrigaram-no a simular pelo radio que se dirigia a Santa Cruz quando na verdade estava indo para o Peru, e do Peru continuaram até o México nos dias que se seguiram. Contou também que pelo “traslado” havia recebido uma quantidade de dólares não informada e que foi obrigado a permanecer clandestinamente no México sob o risco de ser morto. Os dois passageiros venderam a aeronave para traficantes e foram para Cuba mais tarde. Daí, sabendo que não mais corria perigo, ele saiu do México e se dirigiu à Bolívia.
Há que se notar que em 1971, a Bolívia, que nunca fora estável politicamente, havia sofrido um golpe militar liderado pelo general Hugo Banzer o qual derrubou o também general, só que de esquerda, Juan José Torres que teve um curto mandato. Parece que os diretores da COMIBOL que fugiram com a grana eram alinhados com Torres e aproveitaram a confusão reinante nas instituições para bandearem-se para os braços de Fidel, fato bastante comum naqueles tempos.
Diante dessa notícia, nossa busca pelo Bonanza, depois de cinco anos estava finalizada, havíamos voado mais de quatrocentas e cinquenta horas na busca de uma aeronave que se encontrava no México, havíamos voado por nada. JAIR, Floripa, 30/05/12. 

sábado, 2 de junho de 2012

Sobre censura

Um país sem livros é um deserto de idéias”, essa frase é minha e traduz o que penso sobre a importância da palavra impressa. Palavra impressa, diante das novas formas de levar as idéias até ao leitor, é apenas uma expressão, porque na verdade o que chamamos de livro sofreu inúmeras adaptações aos novos meios de informação e tornou-se algo muito diferente do que foi no passado, contudo, a essência do livro continua a mesma. O livro é ponte sagrada sobre a qual a humanidade passa para encontrar os rumos que conduzem à civilização. O suporte para o livro não importa, ao longo da história os homens firmaram aquilo que seria importante para suas gerações em pedra, pergaminho, papiro, madeira, metal, papel e, agora, em elétrons na forma de e-book. Lembrando que e-book é uma abreviação para “electronic book”, ou livro eletrônico: trata-se de publicação com conteúdo idêntico ao de uma possível versão impressa, com a característica de ser, claro, uma mídia digital.
Com o desenvolvimento da imprensa no final do século quinze, as pessoas começaram a se interessar pela leitura e a veiculação de ideias se tornou mais fácil e, sobretudo, desejável. A palavra impressa era um pacote que uma vez aberto mostrava conteúdo que viria somar ao que se conhecia, a ampliar horizontes, então, sempre que possível, as pessoas aprendiam a ler para adquirir saberes só possíveis nos livros. Por causa do potencial perigo que poderia representar para as autoridades constituídas e para o poder religioso, a censura nasceu ao mesmo tempo. Normal que aqueles que detêm o poder temam que os produtos da criatividade humana venham a suprimi-lo, ou como pensava o clero, a verdade das escrituras pode ser abalada pelo que a ciência descobrir. Então, proíba-se.
Em consequência, a erudição e a leitura passaram a ser encaradas com receio e até temor puro e simples. O livro era uma preocupação constante da inquisição. O medo da ciência era tamanho que, em 1640, todas as obras de Copérnico foram listadas no index proibitorum da igreja católica. Um inquisidor mais sincero chegou dizer: “A verdade é que nada dissemina e distribui melhor a doutrina dos hereges do que livros, que, como mestres silenciosos, falam constantemente; eles ensinam todo o tempo e em todos os lugares. O adversário e inimigo típico da fé católica sempre confiou nesse meio nocivo
Numa época com tanto receio no ar, os livros eram queimados tanto quanto pessoas. Nos auto de fé, como eram chamados os espetáculos da queima de hereges, os livros também encontravam um fim ignóbil. A estupidez e o medo eram tão fortes que em 1579 o inquisidor geral de Portugal ordenou que livros fossem incinerados até não mais restar nem cinzas. Intelectuais como Cervantes se indignavam com essas barbaridades, tanto é que ele incluiu no seu magistral “Don Quixote” a cena em que uma governanta incinera a coleção de livros de cavalaria do pobre cavaleiro andante Quixote para preservar a integridade da mente daquele sonhador. Na atualidade, Umberto Eco, pensador, linguista, filósofo e escritor italiano, incluiu no excelente “O nome da Rosa” uma cena no qual um frei beneditino cego, zeloso das verdades das escrituras, queima um acervo valiosíssimo de livros raros para impedir que as heresias contidas neles se disseminem. Claro que ao longo do tempo muitos outros escritores registraram suas revoltas contra essas censuras. Ray Bradbury escreveu “Fahrenheit 451” – temperatura da queima do papel – para denunciar a suposta periculosidade dos livros. No romance os livros são perigosos demais para a população e estimulam o elitismo e a divergência das normas politicamente corretas, então devem ser queimados.
Livros conduzem idéias e estas podem não serem convergentes com o establishment e podem até contestá-lo, então livros são perigosos, essa é conclusão do obscurantismo que normalmente acompanha o poder. Nos dias de hoje, nos países que os fundamentalistas islâmicos dão as cartas, os livros não têm livre trânsito, se não são queimados em praça pública também não são vendidos livremente. Continuam sendo objeto de censura. Parece que enquanto houver livros e poder discricionário haverá inquisição literária e quem perde é a humanidade. JAIR, Floripa, 01/06/12.